Memórias de Frederick Douglass retratam o horror da escravidão nos EUA

Best-seller 'Autobiografia de um Escravo' revela papel da leitura na formação do líder abolicionista

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São Paulo

“Educação e escravidão são incompatíveis”, escreveu o líder abolicionista Frederick Douglass em seu mais célebre livro, “Autobiografia de um Escravo”. Lançada cerca de 20 anos antes da abolição da escravatura nos EUA, ocorrida em 1863, a obra se tornou um best-seller e influenciou sentimentos anti-escravagistas por todo o país.

Dono de uma oratória potente, Douglass se tornaria figura central do abolicionismo americano a partir de textos e discursos mobilizadores, nos quais mais tarde incluiria as causas sufragistas. Seus ouvintes, contaminados pela narrativa racista em voga, mal podiam acreditar que um ex-escravizado fosse capaz de tamanha eloquência.

Douglass criou três jornais abolicionistas e mobilizou batalhões de soldados negros durante a Guerra Civil (1861-1865). Advogou pelos direitos de pessoas negras libertas, inaugurando o movimento pelos direitos civis nos EUA. Foi consultor de diversos presidentes dos EUA e ocupou cargos diplomáticos.

O livro de memórias, que chega agora ao Brasil pela editora Vestígio, se concentra na primeira parte de sua fabulosa trajetória. Douglass relata desde as primeiras lembranças de menino nascido sob o signo da escravidão até a sua fuga definitiva para a liberdade, em 1838, quando sente como se escapasse de um "covil de leões famintos".

A narrativa crua, ainda que contida, é um relato singular em primeira pessoa sobre o inferno físico e psicológico da escravidão —um tipo de registro que inexiste no Brasil, por exemplo.

Douglass conta sua trajetória tão terrível quanto espetacular, pontuada pelo que chama de "providências": fatos que teriam promovido a emancipação crítica necessária a seus movimentos por liberdade e igualdade.

Separado ainda bebê da mãe, Douglass cresceu testemunhando maus-tratos, torturas e assassinatos de "irmãos escravizados" em grandes fazendas de tabaco, milho e trigo. “Era um dito comum, mesmo entre meninos pequenos, que custava meio centavo para matar um ‘preto’ e outro meio centavo para enterrar um”, descreve ele, no que soa estranhamente atual.

Emprestado para parentes de seu senhor que viviam em Baltimore, Douglass vai viver com uma família estreante no escravagismo e, portanto, distante das práticas violentas comuns nas fazendas.

Sua inexperiente senhora lhe ensina o abecedário, o que era proibido por lei à época. Descoberta, ela é repreendida pelo marido em cena que provocaria uma epifania crucial ao menino Douglass. “Se você ensinar aquele preto (falando de mim) a ler, nada mais poderá detê-lo. Isso o tornaria inapto a ser escravo. Ele se tornaria inadministrável e sem qualquer valor para seu senhor", descreve ele.

Sob o impacto dessa assertiva, Douglass passa a perseguir furtivamente a alfabetização e a leitura como meios de subverter sua condição de escravizado. Ele estrategicamente se aproxima de garotos brancos do bairro para obter lições disfarçadas de desafios e brincadeiras.

Já letrado, começa a estudar às escondidas. Entre os livros que lia e relia estava “The Columbian Orator”, compilação de ensaios políticos, poesia e diálogos publicada em 1797 e utilizada na educação infantil do início do século 19. Entre os textos que mais o marcaram está um diálogo em que um homem escravizado, recuperado após uma fuga malsucedida, convence seu senhor de ter direito à liberdade.

O poder dessas leituras de promover questionamentos e articular projeções de liberdade acompanha a vida de Douglass desde então. A liberdade "agora aparecera, para nunca mais desaparecer". "Ela era ouvida em cada som, e vista em tudo. Estava sempre presente para me atormentar com a sensação de minha condição desprezível. Eu nada via sem vê-la, eu nada ouvia sem ouvi-la, e nada sentia sem senti-la."

O leitor acompanha como o entendimento de Douglass sobre a escravidão se torna cada vez mais elaborado, tornando-se simultaneamente fonte de conflitos e angústias, de terror, mas também de esperança. “Descobri que para fazer um escravo contente é necessário fazê-lo sem pensamentos. É preciso escurecer sua moral e sua visão mental e, tanto quanto possível, aniquilar a força da razão.”​

A potência de seus relatos está tanto na objetividade com que revela as dinâmicas entre senhores e seus escravizados —numa relação que descreve como embrutecedora de parte a parte—, mas também na subjetividade do autor, que luta internamente contra os estigmas negativos atribuídos a pessoas negras para se constituir como um legítimo self-made man.

Autobiografia de um Escravo

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