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Contrários ao aborto dificultam acesso ao procedimento legal na Argentina

Ações judiciais questionam lei aprovada em dezembro, e médicos alegam objeção de consciência

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Daniel Politi
Buenos Aires | The New York Times

​Pela primeira vez em mais de um século as argentinas podem abortar legalmente. Mas a mudança histórica na lei talvez não as ajude muito em hospitais como um em Jujuy, província do norte do país, onde todos menos um obstetra dão uma resposta simples: não.

Os adversários do aborto estão consternados desde que a legalização do procedimento foi autorizada em lei, em dezembro. Mas estão longe de terem se rendido. Estão movendo ações judiciais alegando que a nova lei é inconstitucional. E fazem questão de que os médicos saibam que têm o direito de se negar a interromper gravidezes —uma mensagem que está ganhando a adesão de muitos em áreas rurais.

Visitantes comemoram aprovação da descriminalização do aborto no Senado argentino - Senado da Argentina - 30.dez.2020/Reuters

“A lei já é realidade, mas isso não quer dizer que a gente tenha que ficar parada”, disse a clínica geral Gloria Abán, adversária da legalização do aborto. Ela percorre os longínquos Vales do Clachaquí, na província de Salta, para atender pacientes. “Precisamos ser proativos.”

Na vizinha província de Jujuy, 29 dos 30 obstetras da Maternidade e Hospital Infantil Hector Quintana declararam objeção de consciência, como permite a lei. Também o fizeram todos menos um punhado dos 120 ginecologistas da província, contou o médico Rubén Véliz, diretor do departamento de obstetrícia do Hospital Hector Quintana. “Realmente estamos parados no olho do furacão”, disse.

A lei do aborto na Argentina assinalou uma mudança cabal para os direitos reprodutivos na América Latina, região que tem algumas das leis mais restritivas do mundo em relação ao procedimento, dinamizando movimentos para ampliar o acesso ao aborto seguro na Colômbia, México e Chile.

Mas mesmo funcionários da administração do presidente Alberto Fernández, que apresentou o projeto de lei, reconhecem que ainda falta muito trabalho para assegurar o acesso das mulheres ao procedimento. “Os ativistas terão que exercer um papel chave”, disse em entrevista a ministra argentina das Mulheres, Gênero e Diversidade, Elizabeth Gómez Alcorta.

A lei, que entrou em vigor em 24 de janeiro, permite a interrupção voluntária da gravidez nas primeiras 14 semanas de gestação. Até então, o aborto, proibido quando a Argentina adotou seu primeiro Código Penal, em 1886, só era aceito por lei em casos de estupro ou quando havia risco à saúde da mãe.

Nos últimos dias, ativistas antiaborto —que lutaram em vão enquanto legisladores debatiam a lei— se voltaram aos tribunais, movendo ações judiciais em pelo menos dez províncias pedindo para a nova lei ser declarada inconstitucional.

Eles ganharam uma primeira escaramuça na província setentrional do Chaco, onde no final do mês passado um juiz emitiu uma medida cautelar para impedir a lei de entrar em vigor. Mas os ativistas pró-direito do aborto preveem que sairão ganhando nos tribunais.

“Era previsível que alguns setores tomassem a decisão de recorrer a juízes para tentarem bloquear a lei”, comentou Vilma Ibarra, a secretária legal do presidente, que redigiu a lei do aborto e exerceu um papel chave em sua aprovação. Ibarra disse que também se espera que uma das ações judiciais chegue à Corte Suprema de Justiça e que esta reafirme a lei: “Não temos dúvida a esse respeito”.

Mas os tribunais não são o maior obstáculo.

A lei enfrenta oposição ampla de médicos em áreas rurais, especialmente nas províncias do norte do país, onde as igrejas católica e evangélicas exercem influência considerável.

“Cerca de 90% dos profissionais de saúde do meu hospital são objetores de consciência”, disse a ginecologista e ativista antiaborto Mirta Gisela Reynaga, da província de Tucumán.

Os ativistas pró-direito ao aborto dizem que as autoridades federais e estaduais estão demorando a traçar planos para implementar a nova lei, especialmente em áreas de maioria conservadora. E isso, afirmam, tem colocado seus adversários em posição de vantagem.

“Aqueles que são contra a lei do aborto são muito mais ágeis do que o ministério e vêm pressionando as pessoas a se cadastrarem como objetores de consciência”, contou a ginecologista Cecilia Ousset, de Tucumán, província conservadora conhecida por políticas restritivas relativas à interrupção da gravidez.

Ousset se envolveu nas guerras do aborto na Argentina em 2019, depois de ter ajudado uma menina de 11 anos que foi estuprada, mas não foi autorizada a abortar. O bebê nasceu por cesárea, mas morreu pouco depois. O caso inflamou ânimos em todo o país.

Autoridades dizem que a oposição de médicos terá impacto limitado, porque a imensa maioria dos abortos nas primeiras 14 semanas de gestação é realizada com comprimidos e não requer um procedimento médico. Mesmo quando um procedimento se fizer necessário, elas disseram, haverá maneiras de contornar os obstáculos.

“A prática está garantida, porque se determinado hospital não tiver profissionais que não sejam objetores de consciência, vamos transferir a paciente para outro hospital”, disse Claudia Castro, diretora da área de Saúde da Mulher da direção geral de Maternidade e Infância de Jujuy.

Ao mesmo tempo em que lutam para melhorar o acesso ao aborto em áreas rurais, ativistas também trabalham para limpar as fichas criminais de centenas de mulheres acusadas de crimes ligados ao aborto nos últimos anos.

O Centro de Estudos Legais e Sociais, entidade de defesa dos direitos humanos que fez campanha pela legalização do aborto, disse que entre 2012 e 2020 houve mais de 1.500 processos judiciais diretamente ligados ao aborto, além de 37 por “eventos obstétricos”, termo geralmente indicativo de abortos espontâneos.

Pode ser mais fácil lidar com a primeira categoria de processos. Como o aborto agora é permitido, quaisquer processos pendentes podem ser arquivados, ainda que isso não seja automático, disse Diego Morales, advogado que trabalha para o centro jurídico.

Os ativistas querem assegurar que mesmo os processos que não levaram a condenações sejam arquivados. “O índice de condenações é muito baixo, mas o próprio processo criminal já opera como castigo, devido ao estigma que carrega”, explicou a advogada Soledad Deza, de Tucumán, que representou muitas mulheres acusadas de abortar.

Tradução de Clara Allain 

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