Descrição de chapéu The New York Times

Muro incompleto erguido por Trump na fronteira está em pedaços que podem permanecer por décadas

Estradas que surgiram durante construção da barreira viraram rotas de contrabando

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Simon Romero Zolan Kanno-Youngs
Sierra Vista (Arizona) | The New York Times

Uma vista majestosa de natureza imaculada na fronteira com o México foi por muitos anos a recompensa dos caminhantes que completavam a Trilha do Arizona, uma rota de 1.300 km que serpenteia desertos, cânions e florestas.

Mas, algumas semanas atrás, algo diferente surgiu no mirante inóspito nos montes Huachuca: um segmento isolado de muro na fronteira, desligado de qualquer coisa, numa área onde migrantes raramente sequer tentam atravessar a fronteira para entrar nos Estados Unidos.

“Ali estava esse pedaço inacabado de muro totalmente inútil, bem no meio daquele lugar mágico”, comentou Julia Sheehan, 31, enfermeira e ex-mecânica das Forças Armadas que caminhou até o local com três outros militares veteranos que estão percorrendo a Trilha do Arizona.

“É uma das coisas mais sem sentido que já vi na vida.”

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Trecho de muro incompleto, no sul do Arizona, perto da divisa com o México - Adriana Zehbrauskas/The New York Times

O fragmento de muro, com 400 metros de extensão, faz parte de uma série de novos segmentos de barreira erguidos ao longo da fronteira, alguns deles de aparência bizarra e sem utilidade aparente, que empresários terceirizados se apressaram a erguer nos últimos dias da administração Trump –muito depois de o presidente Joe Biden ter deixado claro que suspenderia a construção do muro na fronteira.

Agora, o muro incompleto, um dos megaprojetos mais caros na história dos EUA, com preço eventual estimado em mais de US$ 15 bilhões (R$ 84 bilhões), volta a acirrar tensões, com críticos exortando Biden a derrubar partes do muro, e líderes republicanos pedindo que o presidente conclua a construção.

A controvérsia mais recente em torno do muro ocorre em meio a um aumento grande da migração por meio da fronteira, o que está levando as autoridades americanas a buscar locais adicionais para alojar recém-chegados, especialmente crianças e adolescentes desacompanhados.

Mais de 9.400 menores migrantes chegaram à fronteira sem seus pais em fevereiro –quase três vezes o número visto na mesma época do ano passado—, criando um problema humanitário sério.

A administração Biden suspendeu a construção do muro em 20 de janeiro, o primeiro dia do presidente no cargo, anunciando um período de 60 dias durante o qual as autoridades determinarão como proceder.

O ex-presidente Donald Trump fez do muro na fronteira um símbolo dos esforços de sua administração para reduzir a imigração. Muitos trechos da fronteira, de 3.100 km de extensão, já contavam com algumas barreiras baixas erguidas por governos anteriores, mas o projeto atolou em controvérsia desde o começo.

Apenas alguns quilômetros de muro foram erguidos no sul do Texas, área onde ocorre a maior parte das travessias ilegais. Em vez disso, boa parte das obras, especialmente nos últimos dias da gestão Trump, foi feita em partes remotas do Arizona onde os casos de travessia ilegal têm sido relativamente incomuns.

A agência de Alfândegas e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP, na sigla em inglês), órgão responsável por selecionar locais para a construção do muro, alegou, em comunicado divulgado na semana passada, que os pontos escolhidos para a construção são “áreas de alta intensidade de entrada ilegal”. “Barreiras na fronteira retardam e impedem atividade ilegal”, disse um porta-voz da CBP, Matthew Dyman.

Alejandro Mayorkas, o secretário de Segurança Interna de Biden, foi instruído a decidir se as obras devem ser “retomadas, modificadas ou encerradas” quando o prazo de suspensão de 60 dias chegar ao fim, neste mês. Mas os esforços de construção de último minuto deixaram uma situação curiosa para a nova administração avaliar. Boa parte da atividade de construção acelerada ocorreu nos dias entre o ataque ao Capitólio por partidários de Trump, em 6 de janeiro, e a posse de Biden, no dia 20 desse mês.

Alguns trechos da fronteira, especialmente em terras federais relativamente planas, agora têm segmentos longos e contínuos de barreiras de aço de nove metros de altura que podem perdurar no deserto por muitas décadas. Em outras áreas os migrantes podem facilmente contornar trechos de muro isolados uns dos outros, alguns dos quais mais parecem obras de arte conceitual do que barreiras imponentes.

Há topos de montanha semidinamitados em que as equipes de operários depuseram suas ferramentas em janeiro, criando um risco aumentado de erosão rápida e até deslizamentos perigosos de terra, agora que se aproxima a estação das monções de verão.

Em alguns lugares, os locais de trabalho abandonados incluem pilhas colossais de mourões de aço não utilizados, ao lado de escavadeiras ociosas e caminhões para transporte de água. No Arizona, fazendeiros reclamam que as estradas improvisadas abertas pelas equipes de operários em encostas perto de segmentos inacabados do muro agora servem como vias fáceis de acesso para contrabandistas e outros que buscam entrar nessas áreas antes remotas ao longo da fronteira.

“Há tantas estradas de acesso agora que as pessoas podem caminhar até o local onde um trecho de muro acaba e alguém pode buscá-las nesse ponto”, disse o conservacionista Valer Clark, que comprou e procura preservar cerca de 150 mil acres de terra ao longo da fronteira, tanto nos EUA quanto no México.

Clark disse que o administrador de uma fazenda se demitiu recentemente depois de sua casa ser arrombada –um tipo de crime que era raro na região até as novas estradas aparecerem.

A administração Trump completou ao todo cerca de 730 km de muro na estrada desde 2017. Quase US$ 4 bilhões (R$ 22,6 bilhões) usados na construção foram desviados de verbas alocadas originalmente para o Departamento de Defesa.

A maior parte das obras envolveu a reforma e melhoria de barreiras menores já existentes. Nos lugares onde antes não havia barreiras, como a região inóspita onde termina a Trilha do Arizona, a administração Trump ergueu um total de 75 km de muro primário novo.

Matthew Nelson, diretor-executivo da Associação da Trilha do Arizona, questionou por que a construtora Kiewit Corp, do Nebraska, que tinha um contrato lucrativo para construir o muro na área, apressou-se a erguer um trecho pequeno em janeiro –numa área que conservacionistas lutavam para preservar—, quando já era provável que a construção seria interrompida depois que Biden chegasse ao poder.

Ele questionou se seria uma tentativa de pressionar a nova administração a levar adiante a construção nova no local e disse que o trajeto da trilha no Coronado National Memorial, uma área de proteção administrada pelo Serviço de Parques Nacionais, foi escolhido devido à sua beleza natural e por situar-se ao longo de uma seção relativamente segura da fronteira, onde poucos migrantes atravessam.

“Para que correr para erguer um quarto de milha de muro no meio do nada, numa região que nunca foi identificada como sendo um ponto onde ocorrem muitas travessias?”, questionou Nelson.

Representantes da Kiewit não responderam a pedidos de comentários sobre o trecho de muro que a empresa ergueu em janeiro na parte final da Trilha do Arizona. A CBP se negou a fornecer informações específicas sobre travessias da fronteira no local.

Rodney S. Scott, chefe da Patrulha da Fronteira, admitiu em novembro que construir o muro no sul do Texas, e não no Arizona, era “uma prioridade maior da Patrulha da Fronteira”. Mas “optei por seguir adiante e passar para áreas de prioridade mais baixa porque eu podia fazer uma diferença ali e naquele momento”.

A área perto da Trilha do Arizona não foi o único lugar com atividade intensa de construção nos últimos dias da administração passada. Apenas entre os dias 4 e 8 de janeiro, a CBP iniciou a construção de 19 km adicionais de muro na fronteira, segundo ela própria informou.

Em alguns pontos da fronteira, como no cânion Guadalupe, no sudeste do Arizona, equipes estavam dinamitando encostas de montanha no dia da posse de Biden.

A administração Biden não deixou claro precisamente quais são seus planos para o muro. Mas em fevereiro, depois de suspender temporariamente os trabalhos sobre o muro, Biden rescindiu a emergência nacional que seu predecessor utilizou para justificar a construção.

Parlamentares democratas de estados da fronteira, incluindo Veronica Escobar, do Texas, e Teresa Leger Fernández, do Novo México, escreveram para Biden neste mês pedindo a ele que cancele todos os contratos de construção remanescentes e use as verbas que restam para remover trechos do muro em locais “onde ocorreram danos ambientais especialmente destrutivos e a destruição de sítios sagrados”.

Ao mesmo tempo, republicanos vêm se posicionando —às vezes literalmente— em torno das lacunas no muro da fronteira, em um esforço para retratar Biden como sendo demasiado leniente com a imigração.

O senador republicano Lindsay Graham, da Carolina do Sul, após fazer uma visita à fronteira no Arizona em fevereiro, disse que uma brecha no muro nesse ponto estava permitindo a entrada ilegal de migrantes através de um leito seco de rio. “Nada nessa área faz sentido a não ser que se feche essa brecha."

Tradução de Clara Allain

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