Na Cúpula do Clima, Bolsonaro responde a ceticismo com promessas vagas

Presidente prometeu mais dinheiro para fiscalização ambiental e antecipou meta climática, mas não detalhou plano para alcançá-la

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Brasília e Washington

O presidente Jair Bolsonaro fez nesta quinta-feira (22) um discurso que causou no mínimo estranhamento para quem acompanha a política ambiental negligente de seu governo. Durante a Cúpula do Clima, liderada pelo presidente americano, Joe Biden, Bolsonaro afirmou ter determinado a duplicação dos recursos destinados às ações de fiscalização ambiental no Brasil, comprometeu-se a alcançar a neutralidade climática até 2050 —dez anos antes do previsto— e acabar com o desmatamento ilegal até 2030.

Orientado pela ala mais moderada do Itamaraty, o presidente brasileiro não deixou de pedir dinheiro aos países estrangeiros para ajudar na proteção das florestas, mas não exigiu recursos antecipados, como queria o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente).

Os EUA deixaram claro nas negociações das últimas semanas que não repassariam recursos ao Brasil sem "ações concretas" e "resultados tangíveis" ainda neste ano e, apesar de verem o discurso de Bolsonaro inicialmente de forma positiva, dizem que é preciso esperar mudanças de fato na postura do presidente.

"Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização", disse Bolsonaro.

O presidente brasileiro esperou por mais de uma hora e meia para falar na reunião internacional organizada em Washington. Antes dele, numa lista elaborada pelos americanos, discursaram quase duas dezenas de líderes, entre os quais os governantes de China, Índia, Rússia, França e Argentina.

O líder americano, anfitrião do encontro, não acompanhou o discurso de Bolsonaro na sala onde os pronunciamentos eram exibidos. O democrata pediu licença "por alguns minutos" antes da fala do presidente argentino, Alberto Fernández, e não voltou a tempo de assistir à participação brasileira.

O presidente Jair Bolsonaro, à dir., ao lado do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, antes de discurso na Cúpula do Clima
O presidente Jair Bolsonaro, à dir., ao lado do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, antes de discurso na Cúpula do Clima - Presidência da República via Reuters

Segundo a agenda divulgada pela Casa Branca, Biden se ausentou para receber o briefing diário de inteligência, no Salão Oval.

Em seu pronunciamento, Bolsonaro disse que o Brasil "está na vanguarda do enfrentamento do aquecimento global" e ressaltou que o país participou com menos de 1% das emissões históricas de gases poluentes. "No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais."

Os dados eram frequentes nas apresentações da equipe de Salles aos americanos, mas os auxiliares de Biden argumentam que um país que detém cerca de 60% da floresta amazônia em seu território precisa de mais comprometimento e ações locais para evitar desastres climáticos —o desmatamento é um dos grandes causadores de emissão de poluentes.

Apesar de ter o discurso avaliado pelo governo Biden como "portas abertas para o diálogo continuar", Bolsonaro frustrou uma das expectativas dos americanos ao não anunciar novas NDCs (Contribuição Nacionalmente Determinada, meta de descarbonização assumida no âmbito do Acordo de Paris).

Ele repetiu as metas já assumidas pelo país, de cortar emissões em 37% até 2025 e em 43% até 2030, e o compromisso que já constava na carta enviada a Biden, de reduzir o desmatamento ilegal no Brasil até 2030. Em um pequeno avanço em relação ao que disse no documento ao líder americano, Bolsonaro afirmou que o Brasil pretende alcançar a neutralidade climática até 2050, "antecipando em dez anos a sinalização anterior".

Na correspondência, Bolsonaro havia tratado a antecipação da meta como uma possibilidade, "caso seja possível viabilizar recursos anuais significativos, que contribuam nesse sentido​".

De acordo com diplomatas brasileiros envolvidos nas negociações, o aceno foi pensado para tentar diferenciar o Brasil de outras nações do Brics, como China, Índia e Rússia, que não se comprometeram com números novos.

O líder brasileiro fez também um apelo por contribuições internacionais, mas sem condicionar a verba a possíveis avanços de agenda. Disse que é preciso haver "remuneração justa pelos serviços ambientais prestados."

"Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostos a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas", discursou.

Bolsonaro ainda defendeu a regulamentação de trechos do Acordo de Paris que tratam do mercado de carbono. "Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recursos e investimentos para impulsionar a ação climática, tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia, como indústria, geração de energia e manejo de resíduos", afirmou.

"Da mesma forma, é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta, como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação."​

O Brasil enfrenta hoje uma forte crise de imagem devido ao avanço do desmatamento da Amazônia e pelo histórico de declarações de Bolsonaro. Sobre a Amazônia, o presidente brasileiro disse nesta quinta que o Brasil tem orgulho de conservar 84% do bioma —na verdade, 83% da área está preservada, de acordo com os dados oficiais. O líder brasileiro ressaltou em seu discurso que o país possui uma matriz energética limpa e tem ampla utilização de biocombustíveis.

O pronunciamento foi preparado em reuniões de Bolsonaro com Salles e os ministros Carlos França (Relações Exteriores), Tereza Cristina (Agricultura) e Fábio Faria (Comunicações) e teve impacto inicial positivo nos EUA.

Os americanos viram de forma positiva o anúncio de Bolsonaro sobre a duplicação dos recursos destinados para ações de fiscalização ambiental. Durante as negociações entre Brasil e EUA nos últimos meses, assessores de Biden já haviam dito que mais dinheiro para órgãos de fiscalização era uma das medidas que considerariam como "ações imediatas" para cumprir a meta de acabar com o desmatamento ilegal até 2030. Mas seguem dizendo que o governo brasileiro precisa apresentar resultados convincentes na redução do desmatamento ainda neste ano.

Os mais recentes dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostraram que a área de alertas de desmatamento na Amazônia em março foi 12,6% maior do que a registrada no mesmo mês de 2020. E há temores no governo —entre os que seguem querendo manter as relações abertas com os EUA— de que os dados de abril não indiquem uma reversão de tendência.


Em outra frente, negociadores americanos e europeus têm recebido com preocupação relatórios sobre a gestão de Salles à frente do Meio Ambiente. Na terça-feira (20), por exemplo, fiscais do Ibama e do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e outros servidores publicaram uma carta na qual afirmam que "todo o processo de fiscalização e apuração de infrações ambientais encontra-se comprometido e paralisado" devido a um recente ato publicado pelo governo.

Ainda neste mês, a superintendência da Polícia Federal no Amazonas entrou em choque com Salles em torno da maior apreensão de madeira da história do Brasil. O então chefe da corporação no estado, Alexandre Saraiva, disse que pela primeira vez viu um ministro do Meio Ambiente manifestar-se contra uma ação que visa proteger a floresta amazônica. E emendou que na PF “não vai passar boiada”, em referência à célebre frase dita por Salles no ano passado.

Em um sinal de força do ministro, Saraiva foi removido do cargo.

Leia a íntegra do discurso

Historicamente, o Brasil foi voz ativa na construção da agenda ambiental global. Renovo, hoje, essa credencial, respaldada tanto por nossas conquistas até aqui quanto pelos compromissos que estamos prontos a assumir perante as gerações futuras.

Como detentor da maior biodiversidade do planeta e potência agroambiental, o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global.

Ao discutirmos mudança do clima, não podemos esquecer a causa maior do problema: a queima de combustíveis fósseis ao longo dos últimos dois séculos.

O Brasil participou com menos de 1% das emissões históricas de gases de efeito estufa, mesmo sendo uma das maiores economias do mundo. No presente, respondemos por menos de 3% das emissões globais anuais.

Contamos com uma das matrizes energéticas mais limpas, com renovados investimentos em energia solar, eólica, hidráulica e biomassa.

Somos pioneiros na difusão de biocombustíveis renováveis, como o etanol, fundamentais para a despoluição de nossos centros urbanos.

No campo, promovemos uma revolução verde a partir da ciência e da inovação. Produzimos mais utilizando menos recursos, o que faz da nossa agricultura uma das mais sustentáveis do planeta.

Temos orgulho de conservar 84% de nosso bioma amazônico e 12% da água doce da Terra.

Como resultado, somente nos últimos 15 anos evitamos a emissão de mais de 7,8 bilhões de toneladas de carbono na atmosfera.

À luz de nossas responsabilidades comuns, porém diferenciadas, continuamos a colaborar com os esforços mundiais contra a mudança do clima.

Somos um dos poucos países em desenvolvimento a adotar, e reafirmar, uma NDC transversal e abrangente, com metas absolutas de redução de emissões inclusive para 2025, de 37%, e de 43% até 2030.

Coincidimos, Senhor Presidente, com o seu chamado ao estabelecimento de compromissos ambiciosos.

Nesse sentido, determinei que nossa neutralidade climática seja alcançada até 2050, antecipando em dez anos a sinalização anterior.

Entre as medidas necessárias para tanto, destaco aqui o compromisso de eliminar o desmatamento ilegal até 2030, com a plena e pronta aplicação do nosso Código Florestal. Com isso reduziremos em quase 50% nossas emissões até essa data.

Há que se reconhecer que será uma tarefa complexa.

Medidas de comando e controle são parte da resposta. Apesar das limitações orçamentárias do governo, determinei o fortalecimento dos órgãos ambientais, duplicando os recursos destinados às ações de fiscalização.

Mas é preciso fazer mais. Devemos enfrentar o desafio de melhorar a vida dos mais de 23 milhões de brasileiros que vivem na Amazônia, região mais rica do país em recursos naturais, mas que apresenta os piores índices de desenvolvimento humano.

A solução desse “paradoxo amazônico” é condição essencial para o desenvolvimento sustentável na região.

Devemos aprimorar a governança da terra, bem como tornar realidade a bioeconomia, valorizando efetivamente a floresta e a biodiversidade. Esse deve ser um esforço que contemple os interesses de todos os brasileiros, inclusive indígenas e comunidades tradicionais.

Diante da magnitude dos obstáculos, inclusive financeiros, é fundamental poder contar com a contribuição de países, empresas, entidades e pessoas dispostas a atuar de maneira imediata, real e construtiva na solução desses problemas.

Neste ano, a comunidade internacional terá oportunidade singular de demonstrar seu comprometimento com a construção de nosso futuro comum.

A COP26 terá como uma de suas principais missões a plena adoção dos mecanismos previstos nos Artigos 5º e 6º do Acordo de Paris.

Os mercados de carbono são cruciais como fonte de recursos e investimentos para impulsionar a ação climática, tanto na área florestal quanto em outros relevantes setores da economia, como indústria, geração de energia e manejo de resíduos.

Da mesma forma, é preciso haver justa remuneração pelos serviços ambientais prestados por nossos biomas ao planeta, como forma de reconhecer o caráter econômico das atividades de conservação.

Estamos, reitero, abertos à cooperação internacional.

Senhores e senhoras,

Como todos reafirmamos em 92, no Rio de Janeiro, na conferência presidida pelo Brasil, o direito ao desenvolvimento deve ser exercido de tal forma que responda equitativamente e de forma sustentável às necessidades ambientais e de desenvolvimento das gerações presentes e futuras.

Com esse espírito de responsabilidade coletiva e destino comum, convido-os novamente a apoiar-nos nessa missão.

Contem com o Brasil.

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