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Indicado ao Oscar, curta 'Do Not Split' põe espectador na linha de frente dos protestos em Hong Kong

Documentário registra atos pró-democracia que eclodiram no território chinês em 2019

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Carlos Graieb
São Paulo

Quando as indicações ao Oscar foram divulgadas neste ano, o jornal Global Times, editado com a bênção do Partido Comunista Chinês, se apressou em publicar um comentário sobre "Do Not Split" (ninguém solta a mão de ninguém, em tradução livre), que concorre ao prêmio de melhor documentário de curta-metragem neste domingo (25).

"Obra tem viés político e carece de valor artístico", dizia o título. No texto, "observadores da indústria cinematográfica" alertavam que a indicação poderia "ferir os sentimentos dos chineses" e trazer repercussões. Quanta presciência. Dias depois, o governo proibiu a transmissão do Oscar.

O diretor Anders Hammer, durante filmagem em Hong Kong, em 2019 - Oliver Haynes/Divulgação/Reuters

"Do Not Split" é um daqueles documentários que põem o espectador na linha de frente de um acontecimento histórico. Tem cenas de alta tensão sobre os protestos que eclodiram em 2019, quando um projeto de lei ameaçou autorizar a extradição de cidadãos de Hong Kong para a China.

Inicialmente, o cineasta norueguês Anders Hammer pretendia abordar a história por diversos lados, ouvindo ativistas, políticos e habitantes de Hong Kong alinhados com a China. Esbarrou na reserva e desconfiança dos dois últimos grupos e optou por outra estratégia: registrar os fatos ao rés do chão. Utilizou somente imagens captadas por ele mesmo, entre setembro de 2019 e a eclosão da pandemia do coronavírus, já em 2020.

A câmera acompanha especialmente manifestantes muito jovens que enfrentaram a polícia e responderam com coquetéis molotov às bombas de gás lacrimogêneo lançadas pelos batalhões de choque. Hammer adere ao princípio do "mostre em vez de explicar". Há pouquíssima contextualização e nenhuma análise.

Mas por que o filme "feriu sentimentos"? Por trazer mais do que som e fúria. Seus 35 minutos transmitem com veemência a angústia de uma população que luta contra um oponente muito mais forte —e cada vez mais pronto a suprimir sua identidade e suas liberdades.

É interessante comparar "Do Not Split" com "Ten Years" (dez anos), disponível na Netflix. Trata-se de uma coletânea lançada em 2015, com curtas ficcionais que imaginam Hong Kong num futuro próximo. Num deles, um cidadão ateia fogo ao próprio corpo. Em outro, o dialeto cantonês falado em Hong Kong é progressivamente banido. Num terceiro, um casal cataloga lembranças de desaparecidos. Um curioso parentesco une essas pequenas ficções distópicas e o documentário. Ambos produzem, antes de mais nada, um impacto emocional.

Esse impacto talvez fosse atenuado se "Do Not Split" mostrasse outros pontos de vista e tivesse maior profundidade histórica. Mas é improvável que a China o apreciasse mais por causa disso. O que define as relações entre o gigante comunista e a pequena ilha são promessas não cumpridas —algo que nenhum observador com o mínimo de isenção permitiria escapar.

Quando Hong Kong deixou de ser uma colônia britânica, em 1997, a China concordou em mantê-la como região autônoma até, ao menos, 2047. Pequim decidiria questões de política externa. As liberdades civis de Hong Kong seriam mantidas e até ampliadas, para acolher eleições livres. Rapidamente, contudo, a China começou a explorar ambiguidades na Constituição de Hong Kong para tolher sua autonomia.

Em 2005, a ilha se levantou pela primeira vez contra esses artifícios. Em 2014, veio a Revolução dos Guarda-Chuvas (ainda hoje, escudos contra bombas de gás). Em 2019, a mais longa e aguerrida sequência de protestos. Não será surpresa se as ruas se encherem de novo assim que as restrições da pandemia acabarem. Em março, algumas centenas já se mobilizaram contra a prisão de 47 ativistas pró-democracia.

"Do Not Split" pode ser visto no site da produtora Field of Vision. Se não estiver na China, assista ao Oscar para saber se ele leva a estatueta.

Do Not Split

  • Onde fieldofvision.org/do-not-split (Grátis)
  • Produção EUA e Noruega, 2020
  • Direção Anders Hammer
  • Duração 35 min.
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