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Entenda quando um voo comercial pode ser interceptado e desviado

Especialista em direito aeronáutico internacional cita possíveis infrações da ditadura belarussa ao forçar avião a pousar em Minsk para prender blogueiro

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Bruxelas

O desvio de um voo comercial pela ditadura belarussa “cria um precedente muito grave, deixa as pessoas muito inseguras, e os Estados tentarão investigar e reagir rapidamente”, diz o especialista brasileiro na área Paulo Calazans, 52.

Na operação comandada pelo ditador Aleksandr Lukachenko, no domingo (23), um caça Mig-29 e um helicóptero militar foram usados para interceptar um Boeing da Ryanair Sun (subsidiária polonesa da companhia de sede irlandesa) que seguia de Atenas a Vilnius.

O avião levava para a Lituânia um jornalista belarusso crítico ao regime, Roman Protassevich. Em Minsk, onde o avião foi forçado a pousar, o blogueiro de 26 anos e sua namorada, a russa Sofia Sapega, 23, foram presos por agentes de Lukachenko.

avião militar anda em pista de pouso comum para-quedas aberto em sua cauda
Caça militar Mig-29 da Belarus durante exercícios nos arredores de Minsk, em 2015; avião semelhante foi usado para interceptar voo da Ryanair - Vasily Fedosenko - 23.set.15/Reuters

Casos como esse colocam em risco a vida dos passageiros e da tripulação e afetam economicamente as empresas, ambas esferas reguladas pela legislação aeronáutica internacional, diz Calazans.

Piloto comercial há 32 anos, ele é também advogado, membro da Comissão de Direito Aeronáutico da OAB e está concluindo um livro sobre direito público da aviação. Dos Estados Unidos, onde trabalha, ele falou sobre como as regras internacionais tratam a segurança dos voos e o que deve ser levado em conta nas investigações sobre o desvio de um voo da Ryanair pela ditadura da Belarus.

Como a interceptação de voos é tratada no direito aeronáutico internacional?

Os textos regulam as relações entre os países sob dois pilares: economia e segurança do tráfego aéreo.

No pilar econômico, entram perdas com atrasos ou quebra de regularidade de voos provocadas por uma interceptação. No de segurança, os riscos que uma interceptação militar traz para o avião, os passageiros e a tripulação. O direito aeronáutico atinge só voos civis —não se aplica a aviões militares ou de Estado, como os da polícia ou da aduana.

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Quais os principais regulamentos?

O chamado Sistema de Chicago, que surgiu após a Segunda Guerra Mundial para regular um mercado promissor —com centenas de aviões militares disponíveis para uso civil— e ao mesmo tempo sujeito a rescaldos políticos dos conflitos recentes.

Durante a Guerra Fria, incidentes que levaram à morte de passageiros civis fizeram os países adendarem a Convenção de Chicago para incluir um novo artigo, o 3bis, abordando especificamente as interceptações.

Num dos casos, em 1980, um DC-9 da Itavia foi interceptado por um avião militar e abatido por um míssil, matando as 81 pessoas a bordo. A causa e os autores não foram identificados.

Em 1983, o voo 007 da Korean Airlines foi derrubado por jatos interceptadores soviéticos, provocando a morte dos 269 ocupantes. Segundo a investigação, um avião espião americano havia feito na véspera a mesma rota que o avião civil.

Com uma sequência de “sequestros” [como são popularmente chamados apoderamentos ilícitos] de aviões para fins políticos —como o de três aviões que seguiam para os EUA em 1970 e foram desviados para o Egito e a Jordânia pela Frente Popular para a Libertação da Palestina—, criaram-se também novas regras sobre o assunto na Convenção de Montreal.

Que regras podem ter sido quebradas na operação da Belarus?

Há três violações aparentes:

  1. do direito costumeiro, que estabelece a cooperação internacional e a não intervenção no fluxo aéreo

  2. do artigo 3bis da Convenção de Chicago, que tipifica como ato ilegal a intervenção indevida e injustificada de aeronaves militares contra aviões civis —porque afeta economicamente a empresa e põe em risco a vida dos passageiros

  3. da Convenção de Montreal, cujo artigo 1º estabelece como uma infração internacional a comunicação deliberada de informação sabidamente falsa —no caso do desvio da Ryanair, o regime belarusso disse ter recebido ameaça de bomba

Quem decide se um avião pode sobrevoar um país?

Há acordos bilaterais e multilaterais bastante detalhados, que estipulam, por exemplo, número de voos, horários e as taxas que são pagas ao Estado que se sobrevoa. Os documentos são depositados na Organização Internacional da Aviação Civil (Icao). Entre as chamadas liberdades do ar estão o direito de sobrevoo e o direito de pouso técnico —para abastecer ou em caso de pane.

Se há acordos, como um país pode proibir que empresas belarussas parem de passar por seu espaço aéreo?

Os acordos têm cláusulas de rescisão, e um Estado pode argumentar que houve violação das regras. É isso que a União Europeia fará entre as sanções anunciadas nesta semana.

Um país pode proibir que suas empresas sobrevoem a Belarus?

Sim. As companhias se submetem ao poder regulatório do Estado. No caso do voo de Atenas a Vilnius, a empresa —Ryanair Sun, subsidiária da Ryanair— é polonesa e deve respeitar as decisões da Polônia.

Em seu próprio espaço aéreo, quando um Estado pode interceptar um avião?

Há três hipóteses:

  1. o uso de aviões para fins contrários à convenção, como, por exemplo, o tráfico de drogas

  2. a legítima defesa, como em caso de suspeita de uma bomba —que, se explodir, atingirá seu território. Esse deve ser o argumento apresentado pela Belarus

  3. uma declaração de guerra ou emergência nacional, como as que existem hoje no leste da Ucrânia —após o início de conflito com a Rússia, em 2014— ou na região da Etiópia e da Eritreia

Interceptações já foram determinadas também em episódios no qual o voo estava em perigo, como o da Germanwings, derrubado propositalmente por seu copiloto em 2016, ou o da Helius Airways, cujos pilotos desmaiaram por falta de oxigênio em 2005.

Como é feita a interceptação?

Há protocolos específicos tanto de sinalização quanto de manobras a serem seguidas nessa situação.

Os jatos interceptadores usam suas luzes e balanços de asas para se comunicar com os pilotos do voo civil, que são treinados para essa eventualidade. Manobras de aproximação do aeroporto e de pouso também são específicas, já que em geral a interceptação ocorre quando o voo está em risco.

Em geral, o piloto costuma ser avisado pelo controle aéreo sobre a interceptação. Há também canais de rádio codificados, em que o piloto civil se comunica com o militar, tanto para aceitar a interceptação quanto para receber instruções.

Quem pode pedir investigações?

Os Estados e a Icao. Como a empresa tem matrícula polonesa, a Polônia pode determinar investigação. Lituânia (para onde seguia o voo) e Letônia (que faz fronteira com os dois países) já começaram a apurar os fatos.

Quem faz as investigações?

Os Estados destacam procuradores, diplomatas e peritos aeronáuticos, que vão avaliar gravações e outros documentos e tentar obter cópias das ordens militares. A Icao, ligada à ONU, avalia o caso, e sua assembleia —formada por Estados membros— determina sanções.

Qualquer Estado pode ser punido?

O direito internacional é baseado em cooperação voluntária, portanto é preciso que o Estado reconheça a jurisdição dos tratados. A Belarus é parte contratante da Convenção de Chicago, o que permite sua punição.

Quais as possíveis punições?

Sanções diplomáticas, ordens de reparação econômica ou de restabelecimento do status quo anterior —no caso da Belarus, por exemplo, garantir que o blogueiro chegue a Vilnius, como era previsto antes da interceptação.

Quem garante que a punição será cumprida?

Esse é um dos grandes limites do direito internacional: não há poder de coerção (“enforcement”). Outra dificuldade é que as investigações costumam durar meses, tirando o caso da pressão da opinião pública. Em geral, esses conflitos também saem da esfera do direito e passam para a das relações internacionais, com pressões políticas e econômicas.

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