Fé, liberdade e medo movem céticos da vacina no interior dos EUA

Estado do Tennessee tem um dos menores indíces de imunização do país

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O reverendo Guy Richardson durante culto religioso em Greene County Erin Schaff - 11.abr.21/The New York Times

Jan Hoffman
Greeneville (Tennessee) | The New York Times

"E então, já tomou a vacina?" A pergunta, uma saudação amigável a Betty Smith, a mulher do pastor, pairou no ar quando quatro mulheres se sentaram para seu habitual bate-papo com café às terças-feiras no Mercado Ingle's. Betty hesitou, sentindo um tom frio de julgamento de uma amiga que é contra a vacina e o uso de máscara. Ela disfarçou e não respondeu.

Lembrando desse momento mais tarde, suspirou: "Nós estávamos lá para nos conhecermos melhor, mas a primeira coisa que puseram na mesa foi a vacina para Covid". O assunto deixa seu marido, o reverendo David Smith, ainda mais desconfortável. "Francamente, eu gostaria que as pessoas não perguntassem", disse ele, numa conversa depois da oração de quarta-feira à noite na Igreja Batista de Tusculum.

"Acho que não é da conta de ninguém. E está dividindo as pessoas."

Uma pessoa se vacina em um centro de saúde em Elizabethton, no estado do Tennessee
Uma pessoa se vacina em um centro de saúde em Elizabethton, no estado do Tennessee - Erin Schaff - 9.abr.21/The New York Times

Enquanto a linda primavera se desdobra nos montes Apalaches, no nordeste do Tennessee (sudeste dos EUA), a vacina contra a Covid-19 está afastando amigos, famílias, congregações e colegas de trabalho.

"É uma grande confusão", disse Meredith Shrader, que dirige um espaço para eventos com seu marido, outro pastor. Para ela, a opção se tornou muito mais que um tratamento de saúde. "Qual voz você escuta?"

Comunidades como Greeneville e arredores —uma área rural, de maioria republicana, profundamente cristã e 95% branca— estão no radar do presidente Joe Biden e de autoridades de saúde americanas, num momento em que os esforços para vacinar a maior parte da população dos Estados Unidos entram em fase crítica. São lugares onde a resistência à vacina é mais forte, segundo mostram pesquisas.

As campanhas destinadas a convencer comunidades urbanas negras e hispânicas a abandonar a desconfiança da vacina fizeram avanços notáveis, mas cidades do interior como Greeneville também precisam ser convencidas para que o país alcance a imunidade geral.

Uma viagem de uma semana no condado de Greene revela uma hesitação matizada, em mais camadas do que sugerem as pesquisas. As pessoas dizem que a política não é a principal influência em sua posição sobre a vacina. O motivo mais comum para apreensão é o medo gerado pela produção às pressas da vacina, cujos efeitos a longo prazo ainda são desconhecidos. As decisões também se misturam em uma teia de opiniões sobre autonomia corporal, ciência e autoridade, além de uma forte autoimagem regional, às vezes romantizada: não gostamos que forasteiros se metam em nossa vida.

Segundo estatísticas do departamento de saúde estadual, 31% da população qualificada à imunização no condado de Greene recebeu ao menos uma dose da vacina, abaixo da cifra do Tennessee como um todo, que tem um dos menores índices do país, e muito abaixo da taxa nacional, de 55%, segundo o Centros de Controle e Prevenção de Doenças. Muitos moradores idosos foram inoculados, mas ainda que todos os adultos estejam aptos a tomar a vacina, os locais de aplicação estão quase desertos.

As conversas, no entanto, mostram que para muitas pessoas a resistência não é firme. Corroídos por boatos na internet, muitos desejam informação clara de pessoas em quem eles confiam. Outros têm necessidades práticas, como licença remunerada para se recuperar de efeitos colaterais, que o governo Biden pediu que os patrões ofereçam, ou a oportunidade de receber a vacina de seu próprio médico.

O que também faz falta é um movimento público capaz de encorajar as pessoas em dúvida a dar o salto: muitos que foram vacinadas não contam para ninguém.

Questão de confiança

O condado de Greene é forrado por centenas de igrejas evangélicas, que variam dos edifícios com campanários do século 19 a estábulos em estradas secundárias. As pessoas sobrevivem da agricultura familiar, empregos em pequenas fábricas, cheques do governo e o fluxo de dinheiro de aposentados que estão se mudando para a região de baixo custo de vida e paisagens maravilhosas. Prisões por heroína e metanfetamina sustentam um grupo movimentado de advogados e serviços de pagamento de fiança.

A Covid atingiu com força a região neste inverno. Onze pessoas do círculo amplo de Jim e Rita Fletcher morreram da doença. Mas os Fletcher, que viveram em Greeneville a vida toda, não aceitam se vacinar.

"De que adianta?", eles questionam. "O governo ainda quer que você use máscaras em ambientes fechados. Eu não vejo nenhuma vantagem", disse Rita Fletcher, enquanto o casal esperava para ser atendido por um médico familiar. Nem a ciência nem as estatísticas sobre a nova vacina os abalam.

Hoje aposentado e na casa dos 70 anos, Jim Fletcher foi um engenheiro de telecomunicações; Rita, uma secretária e contadora. Mas o casal, que é da congregação Batistas do Livre Arbítrio, teme que a vacina contenha partes de fetos abortados (não é verdade). Eles não confiam no governo, convencidos de que ele manipula os números de casos de Covid. "Apenas acho que fomos enganados", disse Jim.

As pessoas não depositam muita fé nos pronunciamentos de políticos, mas confiam em Walt Cross, o proprietário da loja Mustard Seed, em Newport, logo após a fronteira do condado, que leva o nome do evangelho de Mateus e vende ervas medicinais, suplementos alimentares e hortifrútis locais.

Cross, que também é chefe de bombeiros voluntário do condado de Cocke, é um homem alto e magro com olhos azuis firmes e um caloroso sotaque montanhês. Ele descreve seu método preferido de reanimar pessoas que tiveram superdose de drogas (amoníaco, em vez de Narcan) ou responde a perguntas de pacientes de Covid sobre como tratar seus sintomas (hidratar-se, comer, tomar extratos herbais, aplicar compressas quentes e frias). Antes de procurar o médico, muitas pessoas telefonam para Cross. Ou depois que os remédios do médico parecem não funcionar. Ele zomba da ideia de que os moradores daqui recusam a vacina simplesmente porque são republicanos, assim como ele.

"Isso não tem sentido", disse. "Foi Trump quem introduziu a vacina." Se tivesse a ver com afiliação política", continuou, "você tomaria sem demora!". Mas ele acha que as pessoas pensam que a vacina está muito entrelaçada com a política. Na região dos Apalaches, explicou Cross, o fervor com que as pessoas evitam a vacina está ligado a história e tradição.

Durante séculos, os colonizadores escoceses e irlandeses se embrenharam nas montanhas para escapar do recrutamento militar e dos coletores de impostos. Jeremy Faison, um antigo deputado estadual republicano que cresceu na região, concorda: "Durante toda a pandemia, muita gente pensou: 'É uma situação séria, mas eu e minha família sabemos cuidar de nós mesmos'".

Faison, que é libertário e cristão evangélico, acrescentou: "Por isso somos contra o governo nos dar ordens, nos pressionar a fazer alguma coisa". Essa visão é reforçada por um fatalismo religioso, quase feliz. As pessoas dizem que, se ainda não pegaram Covid, com um ano de pandemia, vão aceitar o risco.

É verdade, elas podem pegar Covid e morrer. Mas de qualquer modo sairão ganhando: uma vida mais longa na Terra ou, para os fiéis, a vida eterna no Paraíso.

"Há um tempo marcado para toda pessoa morrer", disse Reuben Smucker, um pastor menonita em Greeneville que trabalha instalando portões de garagem. "Devemos cuidar de nossos corpos emocional e espiritualmente, mas se for minha hora de partir e for por Covid, bem, é minha hora de partir."

Depois que Cross, um decano numa igreja Adventista do Sétimo Dia, aconselha os pacientes de Covid, ele reza com eles. "Essa é a coisa mais importante", disse. "Porque é Deus quem faz a cura."

O assunto da vacina emudeceu até os líderes mais influentes do condado de Greene: os pastores evangélicos. Muitos foram vacinados, como David Smith, da Batista de Tusculum, mas não usam o púlpito para defender a imunização. Ele não quer se arriscar a afastar alguém, explicou, num momento em que espera que as pessoas voltem à igreja para adorar. Depois de um ano de serviços religiosos via aplicativo, que as pessoas chamam de "igreja de pijama", ele teme que a frequência presencial caia.

Daniel Shrader, chefe de uma pequena congregação batista, é totalmente a favor da vacina. Ele quer que a igreja seja segura para as senhoras idosas, de audição fraca, a quem ele pregou durante a pandemia gritando dos degraus de suas varandas. Em conversas, ele dá sua opinião sobre a vacina; em reuniões maiores, se atém às orações.

Persuasão

No dia em que os Fletcher, o casal aposentado, falaram sobre a vacina com seu médico familiar, o doutor Daniel Lewis, era o primeiro aniversário do dia em que ele foi colocado em respiração artificial com um caso grave de Covid. Lewis, 43, ficou internado durante mais de um mês. Seu estado era tão grave que ele gravou mensagens de despedida para seus cinco filhos.

Em seus 13 anos em Greeneville, Lewis, um médico voluntário das equipes esportivas do colégio e médico chefe de quatro hospitais regionais da organização de saúde Ballad Health, atraiu um amplo apoio comunitário. Durante o tratamento de sua doença, as pessoas deixaram em sua porta refeições e cartões-presente de restaurantes e mantiveram uma corrente de orações. Elas cortaram a grama do seu quintal, trataram dos canteiros de flores, consertaram sua caminhonete.

Quando saiu do hospital, 15 quilos mais magro, fraco e vacilante, ele e sua mulher, batistas devotos, se esforçaram para entender o desígnio de Deus por trás desse sofrimento. Os pacientes lhe diziam: "Eu não levei a Covid a sério até que o senhor ficou doente".

Então Lewis começou a usar essa credibilidade duramente conquistada para falar sobre a vacina, visitar lares de idosos, dirigir-se a igrejas, fazer vídeos. Ele burilou seu discurso para enfrentar todas as ideias retrógradas, as falsamente científicas, as conspiratórias e as espirituais.

Lewis conseguirá convencer os Fletcher a se vacinar? Ele respondeu pacientemente às perguntas do casal, destacando o que os cientistas já sabem e o que ainda não sabem. "Como podemos ter certeza de que não há chips na vacina, como aqueles que põem nos cachorros?", perguntou Jim Fletcher.

"Não conseguimos fazer microchips tão pequenos", respondeu Lewis. "Ora, parece um grão de arroz", retrucou Fletcher. "Eu não conseguiria injetar um grão de arroz com uma seringa", disse Lewis.

O médico levantou seu smartphone. Se você está preocupado em ser rastreado, disse ele, toda a tecnologia está bem aqui, no aparelho que você pega todo dia, a cada hora. Os Fletcher pareceram constrangidos. "A decisão é de vocês", disse Lewis educadamente. "Eu só quero que tomem uma decisão informada e quero fazer o possível para ajudá-los."

Jim Fletcher respondeu: "Nós precisamos gastar algum tempo conversando". Mais tarde, Lewis estava otimista: "Acho que conseguirei convencê-los". Mas até hoje os Fletcher dizem que não vão tomar a vacina.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves  

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