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No último dia do Apple Daily, jornalistas tentam preservar legado do jornal que incomodou a China

Horas antes da edição final, Redação buscava armazenar reportagens para protegê-las da repressão em Hong Kong

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Hong Kong | Reuters

O último dia de atividades do Apple Daily, jornal pró-democracia de Hong Kong que publicou sua última edição nesta quinta-feira (24) após um ano pressionado por Pequim, foi marcado pela tentativa de preservar o legado do tabloide que tanto incomodou as autoridades chinesas.

O repórter Yau Ting-leung, 23, três anos mais novo que o jornal onde trabalhava desde o ano passado, contou à agência de notícias Reuters que mal conseguiu dormir na véspera do último dia na Redação.

Membro mais jovem da equipe investigativa da publicação, Yau ignorou um comunicado da direção que pedia que os jornalistas ficassem em casa e voltou ao prédio que abriga o jornal —o mesmo onde, há uma semana, mais de 500 policiais invadiram a Redação, prenderam executivos e apreenderam dezenas de computadores e telefones usados pelos repórteres.

Funcionários organizam cópias da última edição impressa do Apple Daily, jornal pró-democracia de Hong Kong - Anthony Wallace - 24.jun.21/AFP

"Não precisei escrever nada hoje [quarta]. Fui encarregado de fazer cópias do nosso trabalho, incluindo nossas reportagens premiadas", disse ele, que não conseguiu terminar a tarefa. "Não houve tempo suficiente."

A última publicação estava prevista para o sábado (26), mas depois que um dos principais colunistas do Apple Daily foi preso na quarta, acusado de conspiração, o conselho editorial decidiu fazer da edição desta quinta a última. Ao todo, foram mais de 9.500.

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A poucos metros de Yau, o editor de especiais Norman Choi, 51, estava trabalhando em um último texto: o obituário do Apple Daily. Rodeado pela bagunça acumulada ao longo de 22 anos no jornal, que incluía embalagens de biscoito e garrafas vazias, Choi usava máscara de proteção preta combinando com a cor das roupas, como se estivesse de luto.

A vice-editora-chefe Chan Pui-man estava entre os cinco executivos detidos durante a operação policial. Libertada sob pagamento de fiança, ela caminhava pela Redação do Apple Daily com os olhos vermelhos. "É difícil controlar nossas emoções."

Conforme a notícia do fechamento iminente do jornal se espalhava, a reduzida equipe —a maior parte dos funcionários havia pedido demissão ao longo da última semana— pôde ver e ouvir grupos de apoiadores se reunindo do lado de fora do prédio.

Perto da meia-noite, as primeiras cópias da última edição —cuja tiragem foi, excepcionalmente, de 1 milhão de exemplares— saíram das impressoras e foram distribuídas sob aplausos da multidão.

O fotógrafo Harry Long e sua equipe não precisaram ir longe para obter a imagem que ilustrou a primeira página. Eles escolheram um registro feito de um andar da Redação que mostra um funcionário acenando para as pessoas e os carros na rua normalmente tranquila. Acompanhando a foto, a manchete: "Sob chuva, honcongueses se despedem tristemente".

Capa da última edição do Apple Daily, em que se lê: 'Sob chuva, honcongueses se despedem tristemente. Apoiamos o Apple' - @hkfp no Twitter

"Estou com o coração partido", disse Long. O repórter Yau também acenou à multidão com a luz de seu telefone celular, antes da rodada de abraços entre os colegas que logo deixariam o jornal definitivamente.

"Íamos começar a chorar de repente, já que não podíamos suportar ver esse fim", disse Yau. "Mas, ao mesmo tempo, estávamos felizes também, por podermos trabalhar juntos neste último dia."

Para o editor Choi, o apoio do público foi emocionante e o ponto alto de sua carreira no Apple Daily. "É a primeira vez que tantos leitores vêm e nos apoiam aqui. E eu sei que é também a última vez."

O sentimento entre alguns funcionários era também de indignação. "Estou muito decepcionado e com raiva hoje", disse o designer Dickson Ng, 51. "Não entendo por que fomos forçados a parar de operar sob essas circunstâncias. Depois de hoje, não há liberdade de imprensa e não vejo futuro em Hong Kong."

Os jornais, empilhados e carregados em caminhões e vans, foram levados às bancas em toda a cidade de Hong Kong. Centenas de pessoas fizeram filas para adquirir a histórica última edição.

"Não consegui dormir bem nas últimas noites", disse Tse, 60, uma profissional da saúde aposentada, enquanto esperava sua vez para comprar o jornal no bairro operário de Mong Kok. "Espero que os repórteres continuem fiéis à sua verdade e continuem trabalhando duro."

No caderno, um texto de despedida de Chan, a vice-editora-chefe, dizia: "Quando uma maçã é enterrada sob o solo, sua semente se torna uma árvore cheia de maçãs maiores e mais bonitas. Amo Hong Kong e todos vocês para sempre."

A alta comissária de direitos humanos das Nações Unidas, Michelle Bachelet, disse nesta quinta-feira que Jimmy Lai, dono do Apple Daily e ferrenho crítico de Pequim, está enfrentando consequências negativas por exercer seus direitos fundamentais. Para ela, a lei de segurança nacional de Hong Kong, utilizada como justificativa para a operação policial no jornal, está levando os jornalistas locais a praticar "autocensura", como forma de evitar atritos com "ofensas vagamente formuladas" na legislação.

Lai cumpre, atualmente, pena de prisão por participar de manifestações contra o regime chinês consideradas ilegais em Hong Kong. O magnata da mídia e os executivos do Apple Daily presos na semana passada são acusados também de conluio com forças estrangeiras, uma das práticas que a lei de segurança nacional visa coibir —além de atividades subversivas, secessão e terrorismo.

Em nota, o Ministério das Relações Exteriores da China disse que Hong Kong é uma sociedade que tem Estado de direito, onde "ninguém ou nenhuma organização está acima da lei". "Todos os direitos e liberdades, incluindo a liberdade de imprensa, não podem cruzar a linha da segurança nacional.”

A legislação também prevê que as autoridades de Hong Kong têm autonomia para solicitar o bloqueio ou a remoção de conteúdo na internet se considerar que ele viola as regras. O site HKChronicles, por exemplo, teve acesso bloqueado por oferecer informações sobre protestos contra o regime.

Na tentativa de proteger o legado do Apple Daily, grupos de ciberativistas começaram a fazer cópias de segurança das reportagens do jornal antes que elas sejam excluídas da internet. A plataforma utilizada, que se descreve como um "HD de propriedade coletiva que nunca esquece", divide cada arquivo digital em partes compartilhadas por uma rede aberta de computadores em todo o mundo.

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