'Cidadãos não sabem para que serve comunidade de países de língua portuguesa', diz secretário-geral

Para Ribeiro Telles, acordo para facilitar circulação de pessoas deve fortalecer CPLP

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São Paulo

Os habitantes dos países lusófonos não sabem qual é a utilidade da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), entidade que completou 25 anos no último mês de julho. Quem diz é o próprio secretário-geral do organismo, Francisco Ribeiro Telles.

Integrado por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste, o bloco tem como objetivo promover a cooperação entre seus países-membros.

“Sentimos que os cidadãos dos países-membros não sabem para que serve a CPLP. Não há um sentimento de pertença do cidadão em relação a esta organização. Eu fui embaixador de Portugal no Brasil de 2012 a 2016 e não me lembro de ter ouvido falar da CPLP nesse período”, diz Telles à Folha.

Francisco Ribeiro Telles durante evento em São Paulo em 2016, quando era embaixador de Portugal no Brasil - Greg Salibian - 6.ago.2016/Folhapress

O diplomata português acredita, no entanto, que esse cenário pode começar a mudar depois da aprovação de um acordo para facilitar a circulação de cidadãos entre os países falantes de português.

O acerto formal —"uma viragem na história da CPLP”, segundo Telles— aconteceu em encontro de chefes de Estado e de Governo em Luanda, capital de Angola, no último dia 17. O Brasil foi representado pelo vice-presidente, Hamilton Mourão (PRTB).

Se aprovado pelos parlamentos dos países que compõem a CPLP, o acordo de locomoção deve tornar mais simples intercâmbios acadêmicos e trocas comerciais.

Telles está em seus dias finais na secretaria-geral da entidade. Seu último ato oficial à frente do organismo internacional será a vinda a São Paulo para a reinauguração do Museu da Língua Portuguesa em evento para convidados neste sábado (31). A partir de agosto, Zacarias Albano da Costa, do Timor Leste, assume o mandato de dois anos.

Na entrevista, ele também comenta a dívida do governo brasileiro com a CPLP e faz um balanço da sua gestão.

Quais os principais acordos firmados nesse encontro em Luanda? Inicialmente, o acordo sobre a mobilidade no espaço da CPLP, que vai permitir maior liberdade de circulação entre os países-membros. Será aplicado de forma gradual e flexível. Agora é urgente que os Estados ratifiquem esse acordo para que possa vir a ser operacionalizado.

Um segundo ponto. Quando a CPLP foi constituída 25 anos atrás, tinha sua sustentação em três pilares: a produção e a difusão da língua portuguesa, que é a matriz identitária; depois, a concertação diplomática; agora, vamos introduzir novo componente, que é fortalecer o caráter econômico empresarial da CPLP. Os empresários queixam-se muito das enormes dificuldades que têm para atuar em determinados países.

Por último, [decidimos em Luanda] pela entrada de novos países observadores. Ingressaram dez, entre eles, Estados Unidos, Canadá e Índia. Da Europa, Espanha, Grécia, Romênia e Irlanda.

O vice-presidente do Brasil, Hamilton Mourão, com o presidente de Angola, João Manuel Gonçalves Lourenço, em Luanda - Romério Cunha/ VPR

O que faz um país observador? Há que rever os procedimentos porque o regulamento foi pensado para poucos observadores. Em 2014, eram apenas três, agora são 30. Entre as novas ideias em discussão, a possibilidade de esses países financiarem projetos de cooperação nos países da CPLP nas mais diferentes áreas, como saúde, educação, ambiente e turismo.

Por ora, cada país, quando manifesta interesse em se associar à CPLP, tem de conceber um plano de ação para os dois anos seguintes, que tenha como base a produção e a difusão da língua portuguesa nesses países.

Dou-lhe um exemplo: na carta que recebi do Departamento de Estado americano para solicitar a candidatura, eles se comprometiam a difundir o português nos EUA devido ao peso das comunidades de falantes de português, nomeadamente as comunidades brasileira, cabo-verdiana e portuguesa. Isso tem, digamos, um efeito multiplicador.

Do ponto de vista prático, o que esse acordo de mobilidade muda para os falantes da língua portuguesa? Nenhum Estado-membro da CPLP faz fronteira com o outro, há uma descontinuidade geográfica. Não podemos aplicar as mesmas regras que a Europa aplica no espaço Schengen, que é a livre circulação de pessoas e bens. Temos que ir por fases.

Numa primeira fase, vamos privilegiar uma série de categorias, como empresários, estudantes, artistas e pesquisadores. É importante tomar nota da complexidade do acordo porque estamos a falar de países com normas jurídicas muito diferentes entre si, com níveis de desenvolvimento econômico muito desiguais.

Portugal, por exemplo, tem compromissos internacionais ligados ao espaço Schengen dos quais não pode abrir mão, como a duração dos vistos, mas pode facilitar as autorizações de residência. Temos a promessa de que o acordo vai ser ratificado por Portugal já em setembro, o que vai facilitar a entrada das pessoas dessas categorias que eu falei.

Esse acordo representa um passo importante, uma viragem na história da CPLP.

Nós sentimos que a organização é importante em determinados níveis, sobretudo do ponto de vista diplomático. A CPLP tem contribuído para a eleição de dirigentes de seus Estados-membros para altos cargos internacionais. É o caso do português António Guterres como secretário-geral da ONU [mandato até 2026] e do brasileiro José Graziano como diretor-geral da FAO [agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, de 2012 a 2019].

Mas sentimos que os cidadãos dos países-membros não sabem para que serve a CPLP. Não há um sentimento de pertença do cidadão em relação a esta organização. Eu fui embaixador de Portugal no Brasil de 2012 a 2016 e não me lembro de ter ouvido falar da CPLP nesse período. De forma que este acordo [de mobilidade], no fim de contas, visa facilitar a situação dos cidadãos dos Estados-membros dos países da CPLP.

E quando o Brasil deve ratificar o acordo? Não sei qual é a tramitação interna jurídica no caso do Brasil. Mas neste tópico da mobilidade em particular, não é necessário que todos os países estejam de acordo para que as regras entrem em vigor em alguns deles. Na CPLP, as decisões são tomadas por consenso, mas nesse tema da mobilidade acertamos que seria diferente. Se há três ou quatro Estados-membros que decidam entre si poder facilitar a circulação, não ficam à espera dos outros para poder celebrar esses acordos.

O sr. falou desta primeira fase do acordo. Como seria a segunda? Ao fim desta fase inicial, com certeza os juízes de cada país farão uma avaliação e documentação do acordo para pensar nas novas etapas. O passo mais urgente neste momento é a replicação do acordo.

Carlos Alberto Franco França, ministro das Relações Exteriores do Brasil, fez uma visita recente à sede da CPLP, em Lisboa. O que os senhores discutiram? O Brasil é um Estado-membro fundador e o maior contribuinte, em termos financeiros, da CPLP. Na visita do ministro, houve a reafirmação da importância para o Brasil da CPLP. Também falamos sobre o acordo da mobilidade, que o Brasil avalia de modo bastante positivo.

A Folha publicou reportagem sobre as dívidas do governo brasileiro com organismos internacionais, entre eles, a CPLP. Como está isso? O ministro França disse que iria empenhar os melhores esforços para que, juntamente com o Congresso, pudesse encontrar uma solução rápida para que isso fosse resolvido. É o que nos foi dito aqui em Lisboa.

Encontro da CPLP em Brasília, em 2016; à frente, José Serra, ministro das Relações Exteriores à época, e Michel Temer, então presidente da República - Pedro Ladeira - 31.out.2016/Folhapress

O sr. está deixando o cargo de secretário-geral da CPLP. Poderia fazer um breve balanço? Tenho contribuído para que essa forma de mobilidade tenha visto a luz do dia, digamos assim. Também tenho contribuído para que haja um novo pilar na CPLP, que é o pilar econômico empresarial. E também a entrada, como eu referi, de novos países observadores na CPLP.

Também assinamos memorandos de trabalho com diferentes organizações internacionais, como a União Europeia. Vamos tentar operacionalizá-la rapidamente. Também com a OEACP [ Organização dos Estados de África, Caribe e Pacífico], que terá um cidadão angolano [Georges Chikoti] como secretário-geral a partir de 2022.


Raio-x

Francisco Ribeiro Telles, 68
Graduado em história pela Universidade de Lisboa, foi embaixador de Portugal em Cabo Verde, Angola, Brasil (2012-2016) e Itália. Foi secretário-executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa no biênio 2019-2020. Venceu a primeira edição do Prêmio de Melo e Torres, criado pela Câmara de Comércio e Indústria de Portugal em 2013 para distinguir o melhor diplomata econômico

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