Pobreza extrema inviabiliza estabilidade no Haiti, país mais pobre do hemisfério Ocidental

Décadas de crises provocaram deslocamentos de milhares e fuga de cérebros para o exterior

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Manaus

Quando mergulham em uma de suas profundas crises, os haitianos recorrem à expressão "Peyi nou tèt anba": nosso país está de cabeça para baixo.

Foi assim em 2004, quando o então presidente haitiano, Jean-Bertrand Aristide, deixou o país em meio a uma escalada de violência promovida por grupos de oposição armados, resultando na intervenção militar via missão da ONU (Minustah), liderada pelo Brasil. E é novamente agora, com o país caribenho mergulhado em um caos político de contornos parecidos, agora agravado pelo assassinato do atual mandatário.

O fato de que Jovenel Möise tenha sido morto a tiros dentro da própria residência escancara o fracasso da ONU e do governo haitiano em fortalecer as instituições do país mais pobre do hemisfério Ocidental. A estruturação da Polícia Nacional Haitiana foi justamente uma das prioridades da Minustah (2004-2017) e da Minujusth (Missão das Nações Unidas para o Apoio à Justiça no Haiti), que durou até 2019.

O então candidato à Presidência do Haiti Jovenel Moise durante entrevista coletiva em Porto Príncipe
O então candidato à Presidência do Haiti Jovenel Moise durante entrevista coletiva em Porto Príncipe - Luz Sosa - 22.out.15/Xinhua

Assim como nos últimos meses de Aristide, o governo Moïse havia perdido o controle de partes do território, incluindo regiões de Porto Príncipe. Em junho, ao menos 8.500 pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas na capital devido a disputas entre grupos armados, segundo a Unicef.

Acampadas, elas sofrem com fome, sede e condições sanitárias precárias. Em 30 de junho, a líder opositora Antoinette Duclair foi morta a tiros dentro do seu carro. No mesmo dia, o jornalista Diego Charles também foi assassinado.

Quando as últimas tropas brasileiras deixaram a ilha, no final de 2017, o antropólogo brasileiro Pedro Braum advertiu que qualquer melhoria institucional deixada pela Minustah seria frágil por causa da pobreza extrema. “É uma população gigantesca sem acesso a direito social nenhum. Sem resolver isso, é difícil criar uma sociedade política estável”, afirmou.

De lá para cá, as condições de vida só pioraram. Braum, que frequenta o Haiti desde 2008 e morou em Porto Príncipe entre 2014 e 2020, afirma que o atual ciclo de violência e crise política começou em julho de 2018, quando Moïse enfrentou violentos protestos após aumentar o preço dos combustíveis em até 51%, resultado de um acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional).

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A partir daí, o Haiti está em um espiral. Escolas deixaram de funcionar por meses devido a vias bloqueadas e à violência. Os sequestros-relâmpago e outros crimes se proliferaram na capital. A principal estrada, que vai de Porto Príncipe até a fronteira com a República Dominicana, é controlada por uma gangue.

No plano político, o Haiti não tem um Poder Legislativo desde o início de 2020, após o cancelamento das eleições, meses antes, e Moïse vinha governando por decreto. Opositores lideraram grandes marchas contra movimentos autoritários do presidente haitiano, que tentava sancionar uma nova Constituição redigida apenas por aliados. E grupos armados voltaram a pregar a tomada do poder pelas armas.

A Covid também teve imenso impacto econômico. Sem trabalho, haitianos no exterior deixaram de enviar dólares aos parentes que ficaram para trás, reduzindo uma das principais fontes de divisas do país. O país também sofre com problemas ambientais crônicos. Ao menos 6% do território foi perdido para processos erosivos, segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Além disso, a sobrepesca no litoral deixou o país sem uma de suas principais fontes de alimento.

O antropólogo, que coordenou o Viva Rio no Haiti, conta que as décadas de instabilidade provocaram uma maciça fuga de cérebros —quase todos os profissionais com quem ele trabalhou no país hoje moram nos EUA, no Canadá ou na França. “Uma energia que poderia ser usada para reconstruir o país está indo para outros lugares.”

Para os que ficam, a crise sem fim gera um grande trauma social. As pessoas se sentem incapazes de materializar desejos, formular projetos para o futuro e desistem de ter um papel político por medo da violência, diz Braum.

“Todo mundo imaginava que algo trágico aconteceria. É um filme que se repete com situações novas”, afirma o antropólogo. “Fica difícil criar estabilidade política quando a vida das pessoas é muito frágil.”

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