Ao contrário do que diz Biden, milhares de militares afegãos combateram até o fim e foram abandonados

Talibã caça soldados ligados aos EUA e ameaça castigar familiares de agentes

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Matthew Rosenberg
The New York Times

Fileiras de soldados afegãos em veículos blindados e picapes percorreram o deserto em alta velocidade para chegar ao Irã. Pilotos militares voaram baixo e rápido para alcançar as montanhas do Uzbequistão, onde estariam em segurança.

Milhares de membros das forças de segurança afegãs conseguiram chegar a outros países nas últimas semanas, enquanto o Talibã foi rapidamente tomando controle do país. Outros conseguiram negociar sua rendição e voltaram para casa. Alguns conservaram suas armas e juntaram-se ao lado vencedor.

Uniformes de militares abandonados no aeroporto de Cabul - Wakil Kohsar/AFP

Todos fizeram parte da processo de fragmentação repentina das forças de segurança nacional que os Estados Unidos e seus aliados gastaram dezenas de bilhões de dólares para armar, treinar e posicionar contra o Talibã, um esforço de construção de instituições travado ao longo de duas décadas e que desapareceu em questão de apenas alguns dias.

Mas dezenas de milhares de outros soldados rasos, comandos e espiões afegãos que combateram até o final, apesar do que vem sendo dito em Washington sobre as forças afegãs terem simplesmente se rendido, foram deixados para trás. Eles agora estão em fuga, escondendo-se e sendo caçados pelo Talibã.

“Não há saída”, comentou Farid, um comando afegão, em mensagem de texto enviado a um soldado americano que combateu com ele. Farid, que concordou em ser identificado apenas por seu primeiro nome, disse que estava escondido nas montanhas do leste do Afeganistão, encurralado depois de unidades do exército regular à sua volta terem se rendido. “Estou rezando para ser salvo.”

Estão começando a vazar relatos sobre o Talibã caçando pessoas que o grupo acredita terem trabalhado e combatido ao lado de forças dos EUA e da Otan, formando um contraponto sangrento ao rosto mais suave e gentil que os militantes vêm procurando mostrar ao mundo.

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Os talibãs estão ameaçando prender ou castigar familiares se não conseguirem encontrar as pessoas que buscam. A informação é de ex-autoridades afegãs, um relatório confidencial redigido para as Nações Unidas e veteranos americanos contatados por afegãos desesperados que serviram ao lado deles.

A maioria exigiu anonimato para falar, para proteger seus amigos e entes queridos que ainda estão escondidos no Afeganistão. Os funcionários afegãos disseram que o Talibã vem vasculhando documentos no Ministério da Defesa e do Interior e na sede do serviço de espionagem afegão, redigindo listas de agentes a procurar. E há cada vez mais relatos segundo os quais os militantes se vingam de modo rápido e fatal quando esses alvos são encontrados.

Um antigo intérprete que trabalhou para as Forças Especiais americanas contou ter visto outro homem ser fuzilado a metros dele pela simples suspeita de haver trabalhado com as forças estrangeiras.

Na cidade de Kandahar, no sul do país, vídeos postados em redes sociais na semana passada pela emissora pública afegã RTA mostraram dezenas de corpos jogados na rua. Muitos seriam de soldados e autoridades executados pelo Talibã. A própria RTA agora está nas mãos do grupo fundamentalista.

Não está claro quantos soldados e funcionários de segurança afegãos estão foragidos. Dezenas de pilotos afegãos fugiram para o Uzbequistão, onde no domingo, segundo autoridades uzbeques, chegaram 22 aviões e 24 helicópteros transportando quase 600 homens. Um número desconhecido alcançou o Irã, segundo ex-autoridades afegãs.

As forças de segurança afegãs chegavam a cerca de 300 mil, no papel. Mas, em função de corrupção, deserções e baixas, dizem autoridades americanas, apenas um sexto desse total participou de fato da luta contra o Talibã neste ano.

Milhares deles se renderam quando o Talibã varreu o país, entregando suas armas depois de receber a promessa de saírem ilesos. Até agora, o Talibã parece estar respeitando esses acordos —historicamente uma parte comum das guerras travadas no país—, e os militantes parecem estar muito mais concentrados em localizar os 18 mil comandos do Exército, muitos dos quais não se renderam, e agentes do serviço de espionagem nacional, o Diretório Nacional de Segurança, ou NDS.

Alguns desses homens se refugiaram no vale do Panjshir, uma pequena faixa estratégica de terra ao norte de Cabul onde um punhado de líderes afegãos está tentando organizar uma força para resistir ao Talibã. Consta que eles teriam entre 2.000 e 2.500 homens, mas não há confirmação independente disso.

Duas décadas atrás, o líder dos mujahedines panjshiris Ahmed Shah Massoud resistiu ao Talibã no vale durante anos. Depois disso, a região ofereceu a espiões dos EUA e membros das Forças Especiais americanas uma plataforma para o lançamento da invasão que afastou o Talibã do poder nos meses seguintes ao 11 de setembro de 2001.

Desta vez, contudo, os panjshiris não possuem armas pesadas, não contam com uma linha de fornecimento passando pela fronteira norte do país, não têm apoio internacional significativo nem um líder unificador como Massoud. Mesmo afegãos que apoiam seu esforço consideram que suas chances de êxito são ínfimas.

No aeroporto de Cabul, várias centenas de comandos do NDS estão ajudando os milhares de soldados e fuzileiros navais americanos que supervisionam a evacuação de estrangeiros e afegãos, segundo autoridades americanas e ex-funcionários afegãos. O acordo fechado com os americanos prevê que os afegãos estarão entre os últimos a partir, servindo de retaguarda até serem levados de helicóptero para a liberdade. “Eles estão tendo um desempenho heroico”, disse um oficial americano.

“Isso é dizer pouco”, comentou outro.

Os comandos do NDS têm bons motivos para sentir medo. As unidades deles mataram muitos combatentes e comandantes do Talibã, mortes essas que os militantes parecem estar ansiosos por vingar.

Membros do Talibã começaram a ir às casas de funcionários seniores de inteligência pouco depois de chegarem a Cabul, no domingo(15). Na casa de Rahmatullah Nabil, ex-chefe do NDS que deixou o país nos últimos dias, eles chegaram com equipamentos eletrônicos para fazerem uma varredura da residência, segundo um ex-funcionário afegão.

No apartamento de outro funcionário de contraterrorismo, membros do Talibã deixaram uma carta nesta semana instruindo o funcionário a se apresentar à Comissão Militar e de Inteligência dos militantes em Cabul. A carta foi reproduzida no relatório confidencial redigido para as Nações Unidas, com nome e título do funcionário omitidos.

Os funcionários de contraterrorismo eram responsáveis por encabeçar os comandos que caçaram líderes do Talibã, e a carta dizia: “O Emirado Islâmico do Afeganistão considera você uma pessoa importante”.

A carta avisou o funcionário que, se ele não se apresentasse ao Talibã conforme ordenado, sua família seria detida e punida.

O documento foi repassado às Nações Unidas pelo Centro Norueguês de Análises Globais, uma entidade que fornece informações de inteligência a agências da ONU. Foi compartilhado internamente pela ONU e foi visto pelo New York Times.

De acordo com o documento, há múltiplos relatos segundo os quais o Talibã tem uma lista de pessoas que quer interrogar e punir –e conhece o paradeiro delas. O documento acrescenta ainda que o Talibã vem indo de porta em porta, “prendendo e/ou ameaçando matar ou prender familiares dos indivíduos alvejados, a não ser que eles se entreguem ao Talibã”.

Tradução de Clara Allain

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