Ascensão do Taleban deve alterar correlação de forças, e vizinhos temem mais revoltas

Para especialistas, países da região devem ter relações pragmáticas com o grupo

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São Paulo

A tomada do poder no Afeganistão pelo Taleban mexeu com o tabuleiro geopolítico da região, e países vizinhos acompanham atentos o desenrolar dos fatos em Cabul. O medo é que o exemplo dos rebeldes afegãos inspire outras revoltas, e o pragmatismo deve ser a tônica na relação com o Taleban, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Da primeira vez que o grupo fundamentalista comandou o país, entre 1996 e 2001, apenas três nações reconheceram o governo do Taleban: Paquistão, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Soldado paquistanês faz guarda na fronteira com o Afeganistão na cidade de Chaman - AFP

O Paquistão, aliás, está na origem do grupo —a palavra taleban significa "estudantes" em pashto, idioma local, e a milícia armada foi formada inicialmente por alunos de seminários religiosos na região da fronteira entre os dois países.

Para Fernando Brancoli, professor do Instituto de Relações Internacionais da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), a recente ascensão do Taleban é uma vitória regional para o Paquistão, que também abriga células do grupo —foi uma delas que atacou, em 2012, a ativista Malala Yousafzai, que depois ganharia o Nobel da Paz.

"O Paquistão basicamente sustentou o Taleban nos últimos anos, tem relações próximas políticas e afetivas. É uma janela de oportunidade para o país, que estava apagado politicamente e volta agora como um ator relevante", diz.

Há setores políticos em Islamabad satisfeitos com a tomada do poder em Cabul, mas o desfecho pode ser negativo para o país, na visão de Betina Sauter, do Isape (Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia).

Primeiro porque, apesar da proximidade, a ascensão do Taleban pode incentivar o terrorismo doméstico em solo paquistanês. Depois, no ambiente externo, deve separar ainda mais os Estados Unidos do país, hoje muito próximo da China. Terceiro, porque pode gerar um alto fluxo de refugiados e prejudicar ainda mais a economia de um país já em crise.

É o que Pio Penna, professor da UnB (Universidade de Brasília), chama de "ficar entre a estrela e o crescente [símbolo do islamismo] e a espada", numa adaptação do ditado popular. "O exemplo não é bom, e não só no Paquistão, mas as cenas da tomada do poder podem inspirar muita gente por todo o mundo."

O sinal de alerta se acendeu também em países onde as populações muçulmanas compõem minorias étnicas —ainda que muitas vezes populosas—, como Rússia, China e Índia, segundo Maurício Santoro, professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

"Há um problema doméstico interno, um medo da ascensão do fundamentalismo e do terrorismo. A ausência das potências ocidentais depois de 20 anos de guerra gera uma novidade estratégica, e há um sentimento de preocupação", diz.

Outro país fronteiriço em atenção é o Irã, que deve ter uma relação ambígua com o novo governo, segundo Sauter.

Por um lado, o país, xiita, quer evitar o fundamentalismo sunita dos talebans, antigos aliados do maior inimigo regional iraniano, a Arábia Saudita. Por outro, o Irã vê no fracasso da missão americana uma forma de contestar a influência dos EUA, outro grande adversário de Teerã. Além disso, tem no grupo afegão um aliado contra o Estado Islâmico, grupo terrorista com quem o Taleban tem brigado ao menos desde 2015.

Soma-se a isso a necessidade de ver o país estável para manter o fluxo de investimentos da Nova Rota da Seda, projeto de financiamento de infraestruturas mundo afora pelo governo chinês.

É essa a chave para entender a relação entre os dois países, segundo Fernando Brancoli, para quem o Irã deve adotar uma postura pragmática com o vizinho. "O Afeganistão estável é o grande objetivo do Irã. Sem fluxo de refugiados, sem tráfico de armas. Não vejo uma aliança com o Taleban, mas pragmatismo", diz.

A segurança nas fronteiras também deve guiar a relação das ex-repúblicas soviéticas Turcomenistão, Uzbequistão e Tadjiquistão, segundo os pesquisadores. Só na segunda (16), um dia após o avanço final do Taleban, o Uzbequistão reteve 46 aeronaves com soldados afegãos que fugiam do país.

Brancoli afirma que esses países não têm grandes políticas para a região e não querem se meter no vizinho, mas que devem se fechar para conter o tráfico de armas e de pessoas. Eles devem se guiar pelo que a Rússia decidir.

Enquanto nos anos 1990 a Arábia Saudita foi um dos poucos Estados a reconhecer o Taleban como legítimo, a situação atual pode ser diferente, na visão do pesquisador.

"Riad [capital da Arábia Saudita] é hoje um grande aliado dos EUA, e uma aproximação com o Taleban pode ser vista como uma espécie de traição. Mas, como os dois tiveram uma relação no passado, não me surpreenderia se os sauditas se apresentassem como uma espécie de mediador com os americanos."

Esse papel tinha ficado até agora com o Qatar, onde o Taleban tem um escritório oficial e que sediou negociações com o agora deposto governo afegão.

Terceiro país a reconhecer o Taleban no passado, os Emirados Árabes Unidos já sinalizaram uma relação amistosa com o grupo.

Anwar Gargash, ex-ministro das Relações Exteriores e voz ativa no país, foi ao Twitter dizer que considerou a proposta de anistia do Taleban "encorajadora" e que espera que o país "agora vire a página do sofrimento em favor da paz e da prosperidade".

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