Descrição de chapéu refugiados

Estupros, afogamentos, roubos: haitiana conta o que viu na perigosa selva a caminho dos EUA

Floresta na Colômbia está entre trechos mais perigosos do caminho a pé feito por migrantes

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São Paulo

Quando chegou aos EUA depois da longa jornada por terra que começara no Brasil, a haitiana Louise enviou mensagens de áudio a amigos brasileiros contando o que viveu no caminho, especialmente na selva de Darien, entre a Colômbia e o Panamá —considerada uma das áreas de floresta mais perigosas do mundo.

Grávida, Louise, que teve seu nome trocado nesta reportagem para preservar sua identidade, havia passado várias semanas em uma ponte que liga o Brasil ao Peru, na cidade de Assis Brasil (AC).

Junto com ela, cerca de 400 migrantes, a maioria do Haiti, foram impedidos pelo governo peruano de passar para o outro lado devido às medidas impostas na fronteira para tentar conter o avanço da pandemia de coronavírus.

Os migrantes acabaram entrando, mas o atraso fez com que chegassem à Colômbia no período chuvoso, quando a travessia da selva é ainda mais arriscada. A seguir, o relato de Louise, em suas palavras:

“Correr a selva é muito difícil. Se entrarem 200 pessoas, com muita oração talvez vão chegar 90, 80. A maioria morre.

O Peru não deixou a gente passar por causa do coronavírus. Esse vírus na verdade está no coração de pedra do presidente do Peru. Se ele tivesse nos deixado passar em fevereiro ou março, a gente faria o caminho seco. Mas passamos nove dias na selva com chuva, e aí o rio cresceu muito e começou a levar as pessoas. Muita gente morreu.

A gente ficou orando, vendo como o rio ia levando as pessoas vivas, as pessoas chorando, pedindo ajuda, e a gente não podia ajudar.

Um dia, ouvi um grito de uma mulher. Ela não chorou porque não tinha mais força para chorar, mas levantou a mão pedindo ajuda. Aí eu entrei na água, retirei ela, mas ela ficou uns cinco ou dez minutos sangrando e morreu. Porque o rio tem força, leva as pessoas para cima e para baixo, tem muita pedra grande que bate na cabeça. Ela era africana.

Um haitiano fez um buraco na areia, enterramos ela e fomos embora chorando. Mas fazer o quê? Não podia ficar, tinha que seguir o caminho.

Muitas pessoas quebraram o pé porque escorregaram e caíram. Aí a pessoa não podia mais caminhar, e a gente não tinha como ajudar, carregar no ombro. Então ficava lá para morrer. Uma menina que estava grávida caiu, começou a sangrar e morreu. O outro, um baixinho que tinha uma menina e um menino, conseguiu salvar a mulher que o rio levou, mas ele bateu a cabeça em uma pedra e morreu também.

O que a gente passou não é fácil. Eu mesma saí do Brasil com gravidez. Se o Peru me deixasse passar, eu não teria perdido meu bebê. Mas fiquei muito tempo na ponte, pegando chuva, dormindo no chão, a polícia atirou gás lacrimogêneo na gente, bateu também. A gente grávida não pode passar por essa dificuldade.

No caminho tem ladrões. Eles têm pistola, arma, facão. E não é só um ladrão que a pessoa encontra, é muita gente. Se você não tem dinheiro, eles te matam com faca. Mataram um africano com um facão atrás da cabeça. Os ladrões 'usaram' a mulher dele, o africano não queria deixar, falou que ia dar dinheiro, mas o ladrão ficou bravo e matou.

Violaram um menininho pequeno, as mulheres. Um grupo que chegou atrás da gente disse que eles tinham violado um cubano, uma venezuelana, uma haitiana. Graças a Deus só violaram, não mataram.

Não é fácil, mas eu penso que tem um Deus que está sempre conosco. Deus está conosco, imigrantes. Imigrante não é ladrão, não é traficante de drogas. Nós sempre estamos procurando onde é melhor. Aqui eu encontro muitos brasileiros. Por que saíram de lá? Porque estão buscando onde é melhor. Também encontrei peruanos, cubanos, equatorianos, todos buscando onde é melhor.

As coisas que a gente passou ficam cravadas na cabeça para a vida inteira. A gente pode um dia ficar bem, conseguir um bom serviço, uma boa casa, um bom carro. Mas isso é uma cicatriz. É uma cicatriz que nunca vamos tirar da cabeça.”

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