Descrição de chapéu refugiados

Haitianos encaram rota cheia de riscos para migrar aos EUA e fugir de crise no Brasil

Mesmo com caos na fronteira e deportações em massa, fluxo para o norte segue intenso

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São Paulo

Criado por haitianos que vivem no Brasil e querem trocar informações sobre migração para os EUA, o grupo de Whatsapp “Mexique t'et dwat” (vou direto para o México, em crioulo) está dividido.

Uma parte quer seguir com os planos de tentar chegar por terra até a América do Norte. Outros preferem esperar para ver como ficará a situação na fronteira com o Texas, onde mais de 14 mil haitianos acamparam em condições precárias nas últimas semanas, em uma crise que tem levado à deportação de milhares deles.

“É melhor trabalhar no Brasil, ganhar o que dá e ficar mais calmo do que ir para a fronteira e sofrer humilhação”, aconselha um dos membros.

O outro retruca. “Não dá para ganhar salário só para pagar aluguel e comer. Todo mundo tem esperança de conseguir ajudar a família no Haiti. Quem quer ir está certo. Deus vai proteger essa pessoa.”

Haitianos embarcam em ônibus para o Mato Grosso do Sul, fronteira entre o Brasil e o Peru, no terminal rodoviário Barra Funda, em São Paulo
Haitianos embarcam em ônibus para o Mato Grosso do Sul, fronteira entre o Brasil e o Peru, no terminal rodoviário Barra Funda, em São Paulo - Bruno Santos/Folhapress

Muitos desses milhares de haitianos que estavam sob a ponte na cidade de Del Rio tinham partido do Chile ou do Brasil. A crise econômica, o desemprego e as dificuldades de regularização, entre outros fatores, os levaram a tomar a decisão de migrar novamente, desta vez para o norte, em uma longa jornada que passa por cerca de dez países.

A viagem é cara e cheia de riscos, a entrada em território americano é incerta, mas a tentação é grande. A informação de que com quatro ou cinco dias de salário em dólar ganha-se mais do que em um mês inteiro de trabalho no Brasil é passada pelos parentes que já vivem nos EUA e difundida nos grupos virtuais e no boca a boca.

Quem precisa sustentar com um salário mínimo não só a si próprio no Brasil, mas também a família que passa dificuldades no Haiti, muitas vezes está disposto a arriscar tudo para tentar chegar ao Texas.

A combinação de recessão no Brasil e mudança de governo nos EUA fez com que o fluxo explodisse a partir do início do ano. Além das promessas do presidente Joe Biden de que daria um tratamento mais humano aos imigrantes, a prorrogação do programa TPS, que oferece proteção temporária para haitianos que já estão em território americano, fez com que muitos acreditassem erroneamente que a entrada de novos imigrantes dessa nacionalidade seria facilitada.

Para os que se amontoaram sob a ponte de Del Rio em condições precárias, nem o tratamento humano nem a entrada facilitada se mostraram verdadeiros. Imagens de guardas de fronteira a cavalo usando rédeas para ameaçar os haitianos rodaram o mundo e geraram críticas à brutalidade com que são tratados os imigrantes.

Voos de deportação já enviaram mais de 2.000 deles para o Haiti, incluindo aqueles que já não moravam no país há anos. Entre eles, havia 30 crianças brasileiras deportadas para Porto Príncipe junto com seus pais.

Com a repercussão da crise na fronteira, o movimento de haitianos que saem do Brasil para os EUA se reduziu, mas está longe de parar. Na tarde da última terça-feira (28), no terminal rodoviário Barra Funda, em São Paulo, a Folha encontrou cerca de 30 deles que embarcavam para Corumbá. A cidade na fronteira do Mato Grosso do Sul com a Bolívia faz parte de uma das rotas para a América do Norte.

Havia famílias com crianças pequenas, homens solteiros e casais jovens, a maioria com mochilas e barracas de camping. Alguns admitiam que pretendiam seguir até os EUA, mas outros diziam que iriam parar no Chile, onde, segundo eles, é possível ganhar um pouco mais do que trabalhando no Brasil.

Uma família de quatro pessoas disse que iria para Tijuana, no México, onde a mãe de dois deles está. Eles querem tentar conseguir alguma renda na cidade mexicana enquanto avaliam a possibilidade de atravessar a fronteira americana pelo estado da Califórnia.

Outros três jovens afirmaram que iriam para o Chile. Um deles trabalhava em um frigorífico em Chapecó, em Santa Catarina, com salário de R$ 1.500. Só o aluguel consumia metade dessa renda. Sentindo-se culpado por não conseguir enviar dinheiro para a família no Haiti, ele diz que trocou o número do celular para não ver mais os apelos enviados por eles.

“O dólar está muito alto, e isso está quebrando os haitianos, porque a gente precisa ajudar a família”, diz a haitiana Daphna Occenac, 29, que vive há sete anos no Brasil e foi ao terminal levar o primo. O jovem ainda não decidiu se ficará no Chile ou seguirá caminho.

“O Chile não dá documento, mas é melhor que aqui para conseguir trabalho. O Brasil seria o melhor país para viver se não fosse pela questão do dinheiro. Mas agora está difícil, a comida está cara”, completa Daphna.

Segundo o padre Paolo Parise, da Missão Paz, entidade que abriga muitos haitianos em São Paulo, a rota para os EUA virou “uma febre” especialmente neste ano. “Tem dois perfis: um de quem já morava aqui, e outro, novo, de haitianos usando o Brasil só como trânsito. Eles entram aqui porque acham mais fácil e depois vão subindo”, conta.

Explorados pelos coiotes e agredidos pela polícia

O tempo de viagem depende de quanto dinheiro a pessoa tem: há quem chegue em algumas semanas e há quem demore meses. O valor necessário para a travessia inteira varia de US$ 3.000 a US$ 10 mil (R$ 16 mil a R$ 53 mil, na cotação atual), segundo informações de vários imigrantes. É preciso separar uma parte para as propinas de guardas de fronteira e serviços de coiotes em alguns trechos.

Muitos haitianos juntam esse dinheiro trabalhando duro por vários meses e vendendo móveis e outros bens. Uma parte também consegue empréstimo com parentes e amigos que moram nos EUA.

Por segurança, eles não levam todo o dinheiro de uma vez: recebem quantias menores em diferentes trechos da viagem, enviadas por alguém da família. O risco é de que roubos, bastante frequentes, arruinem a jornada em direção ao território americano.

Os coiotes costumam cobrar mais caro dos haitianos do que de outros imigrantes, conta a religiosa Joaninha Honório Madeira, da Rede Itinerante da Repam (Rede Eclesial Pan-Amazônica), que presta assistência a imigrantes na região de Assis Brasil, no Acre.

Os imigrantes atravessam o rio até o Peru à noite, de canoa, e de lá pegam vans para Puerto Maldonado, a três horas dali, pagando 20 vezes mais do que o preço regular.

“Os venezuelanos e os cubanos se disfarçam entre os peruanos. Mas os haitianos são mais visíveis [para a polícia] e além de tudo andam em grupos de 15, 20 pessoas. E eles também trabalham duro, vêm com mais dinheiro, com dólares. Então são mais visados pelos coiotes", explica Madeira.

Se descobertos, são mandados a Assis Brasil —e voltam a tentar a travessia, pagando novamente o preço. Segundo relatos colhidos pela Defensoria Pública da União, policiais peruanos demonstram mais racismo e xenofobia contra haitianos e africanos, que são deportados em maior número do que outros imigrantes.

Muitos haitianos também sofrem agressões. Em julho, um deles passou dez dias jogado na mata ao lado do rio devido a uma lesão na coluna. Jacquenue Bosquet, 36, afirma ter sido obrigado pelos policiais peruanos a pular da ponte na fronteira. Sem conseguir movimentar as pernas, ele se arrastou até a área seca e acabou sendo resgatado. Hoje, está em recuperação em um abrigo de Rio Branco, mas ainda não consegue andar.

Até agora, nenhum policial peruano foi responsabilizado.

Segundo Madeira, o movimento migratório dos haitianos para os EUA se intensificou no início do ano e atingiu o auge em março. Com a pandemia descontrolada, uma jovem migrante chegou a morrer de Covid-19 após chegar.

“Vinham 100, 200 por dia. Com a fronteira fechada, a cidade entrou em colapso, ficaram mais de 600 na ponte. Agora diminuiu, mas todo dia passam grupos”, conta.

Desaparecidos e mortos no caminho

O trecho mais temido da rota é o da selva de Darién, entre a Colômbia e o Panamá, onde os migrantes passam mais de uma semana caminhando em meio à densa vegetação, sujeitos a afogamento em rios transbordantes, estupros, roubos e assassinatos por delinquentes.

Coordenador da União Social dos Imigrantes Haitianos, Fedo Bacourt recebe com frequência notícias de conterrâneos desaparecidos ou mortos no trajeto.

“Na semana passada a família de uma jovem que morava em Manaus nos procurou, mandou foto, idade. Falei com um conhecido que está no caminho, e ele disse que ela caiu do barco no Panamá”, conta. “Outra que morava perto de mim foi com o marido e morreu. Ele ficou deprimido, não sei se já chegou ao México.”

Bacourt diz que tenta conscientizá-los dos riscos. “Eu sempre falo que é perigoso, explico o lado bom e o ruim. Mas, infelizmente, a maioria já saiu.”

Mesmo para os que ultrapassam as dificuldades do trajeto, o final da viagem pode ser a deportação para o Haiti. Esse é tido como o pior cenário, ainda mais agora, que a situação política, econômica e social se deteriorou muito nos últimos meses —com o assassinato do presidente Jovenel Moïse em julho, um forte terremoto em agosto e dezenas de gangues armadas ameaçando a população.

A OIM (Organização Internacional para as Migrações) pediu ao Brasil que receba aqueles haitianos que estão no México e tiverem autorização de residência ou filhos nascidos no país. Eles poderiam voltar pelo programa de retorno voluntário da entidade. “Podemos abrir essa opção porque a espera aqui é longa e incerta e há o risco da deportação para o Haiti. Alguns deles saíram de lá há anos, estão desenraizados”, diz Alberto Cabezas, oficial de comunicação da OIM México.

Segundo ele, mais de mil haitianos estão dormindo em um parque de Ciudad Acuña, que faz fronteira com Del Rio. “A cidade não estava na rota mais frequente de migração até algumas semanas atrás. A situação atual é extraordinária.”

A embaixada do Brasil no México ainda não respondeu à consulta da OIM. Em nota, o Itamaraty afirmou que o tema “está sendo analisado à luz da legislação vigente” e que a embaixada em Porto Príncipe acompanha a situação das crianças brasileiras deportadas pelos EUA, “a fim de prestar-lhes a assistência cabível”.

Em entrevista à Folha, o chanceler brasileiro, Carlos França, defendeu que a crise dos migrantes haitianos tenha uma "solução regional" e mencionou como possibilidade a fixação das pessoas em países da América Central, como o Panamá, e os do chamado Triângulo Norte (El Salvador, Guatemala e Honduras).

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