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Aleksandr Iakovenko

EUA mantêm visão em preto e branco de um mundo multicolorido

Abordagens da Rússia baseadas nos princípios de multipolaridade ganharam relevância em face dos novos desafios

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Aleksandr Iakovenko

Reitor da Academia Diplomática do Ministério das Relações Exteriores da Rússia

Nos últimos tempos, especialmente após a retirada dos EUA do Afeganistão, os peritos na Rússia e no exterior questionam-se sobre as conclusões globais a serem tiradas do fracasso tão espetaculoso da "liderança norte-americana".

Com efeito, estamos testemunhando uma expressiva manifestação da inutilidade de impor os esquemas alheios de desenvolvimento, inclusive de tentar "democratizar" uma sociedade asiática. Num contexto mais amplo, foi uma demonstração de inconsistência do conceito do mundo unipolar, o qual não tem nada em comum com a realidade da situação internacional contemporânea.

Presidente dos EUA, Joe Biden, discursa durante evento em Nova Jersey
Presidente dos EUA, Joe Biden, discursa durante evento em Nova Jersey - Andrew Caballero-Reynolds - 25.out.21/AFP

Esses desdobramentos não vieram à toa, e duvido que se possa falar num tal de vácuo de ideias no mundo pós-americano. Pois os fracassos na grande estratégia de Washington de imposição dos seus interesses no exterior não começaram ontem.

Cabe lembrar a inovação malsucedida da administração de Barack Obama, quando os EUA e aliados tentaram introduzir o conceito de uma ordem mundial, baseada em regras, que de fato visava substituir os princípios do sistema de direito internacional pós-guerra com papel central da ONU.

Foi para obter, citando o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, "a prerrogativa de formular monocraticamente a agenda global". A iniciativa não avançou, como se sabe, em primeiro lugar devido à posição intransigente de Moscou e Pequim. Mas, na essência, a implementação desse princípio foi impedida pela própria realidade do mundo multipolar contemporâneo.

Tais ideias foram ainda mais comprometidas pelas ações arriscadas (para falar o mínimo) da administração de Donald Trump no palco internacional sob o lema "America First". Washington rompeu, de forma ostensiva, os laços com reconhecidas instituições e instrumentos internacionais, incluindo o Acordo de Paris sobre o clima, travando e até minando os seus trabalhos.

Infelizmente, ficou quase desmantelado o sistema de acordos na área de estabilidade estratégica, que desempenha um papel primordial em garantir a segurança internacional. Além do mais, a situação se tornou particularmente alarmante com a chegada da pandemia, que desacelerou os fluxos transfronteiriços e fez procurar, ao contrário, uma sinergia entre países para refrear esse novo desafio global e superar as suas consequências.

Hoje, a administração norte-americana, liderada por Joseph Biden, à luz dos acontecimentos no Afeganistão, declara que decidiu se abster de ajudar o processo da "construção das nações" no exterior e, em geral, está reconsiderando o seu envolvimento nos assuntos de outros países em face da necessidade de lidar com os problemas domésticos. Porém, lemas semelhantes, salvo detalhes, são produzidos por Washington há mais de uma década.

Será que a "Doutrina Biden" significa, entre outras coisas, uma vontade real de aprender lições? Ou as prioridades anteriores permanecem inalteradas, deixando a atividade americana no exterior apenas reduzida devido à falta de recursos? Concentrando essa atividade, por exemplo, na tarefa de contenção e confronto com a República Popular da China e a Rússia como "principais oponentes", aliás, sob disfarce ideológico de opor o liberalismo ao autoritarismo.

Se o último cenário for realista, a visão norte-americana em preto e branco de um mundo multicolorido não mudará. O que traz pouco otimismo sobre as perspectivas de avanço da comunidade mundial —logicamente, junto com os Estados Unidos— para uma política global e regional mais saudável e não conflituosa.

O anúncio da criação pelos três países anglo-saxões —Estados Unidos, Grã-Bretanha e Austrália— de uma "parceria para a defesa e segurança" na região do Indo-Pacífico, que visa, de fato, conter a China, parece pesar a favor deste último argumento.

Além disso, em comparação com o "quarteto" regional que funciona com base no diálogo —Estados Unidos, Índia, Austrália e Japão— observamos a redução do nível da cooperação até o círculo civilizacional estreito de Estados culturalmente homogêneos focados nos objetivos correspondentes.

De qualquer modo, os cientistas políticos cada vez mais debatem a criação de uma agenda alternativa, a perspectiva de uma ordem mundial que a humanidade estaria pronta a aceitar, um sistema de ideias e valores que seria apropriado propor na esperança de garantir a sua sobrevivência e prosperidade em um ambiente qualitativamente diferente, com pouco espaço para a velha geopolítica.

Ganham relevo os desafios ambientais que só podem ser enfrentados de maneira eficaz por meio de ampla cooperação internacional, sem viés ideológico, liderada por potências mundiais no âmbito de fóruns representativos, tais como o Grupo dos 20.

A complexidade do planejamento estratégico à parte, é de supor que as abordagens da Rússia em relação aos objetivos internacionais baseadas nos princípios de multipolaridade, de indivisibilidade de segurança, estabilidade e prosperidade não só não perderam como, pelo contrário, ganharam relevância em face dos novos desafios, tais como a pandemia.

Essas abordagens —típicas da diplomacia clássica, incluindo também a diplomacia multilateral e a digital— são adequadas à constante demanda da comunidade internacional por um modelo de desenvolvimento equilibrado e estável.

A crescente regionalização da política mundial (a propósito, caberá às forças regionais resolver a questão da estabilização do Afeganistão) é o indício de que a ordem multipolar não é uma utopia, mas sim um sistema complexo e flexível das relações internacionais que atende às necessidades do nosso tempo.

Nesse contexto, a prioridade seria garantir a igualdade e a observação dos direitos e interesses legítimos de todos os atores internacionais de acordo com os princípios e normas da Carta das Nações Unidas. Não é preciso reinventar a roda. A resposta comum à pandemia e a iniciativa russa de criar a Grande Parceria Eurasiática, integrando a região da Ásia-Pacífico e a Europa, podem servir como exemplos da agenda unificadora. A União Econômica Eurasiática (UEE), a Organização para Cooperação de Xangai (SCO) e a ASEAN já atuam como partes fundamentais dessa parceria. O convite também é valido para a União Europeia.

Destaca-se, também, a defesa russa da consolidação dos esforços internacionais para enfrentar o risco de grandes confrontos cibernéticos, da segurança global de informação.

A Rússia e os países que partilham da nossa visão do mundo têm todos os motivos para acreditar que estão do lado certo da história. Basta lembrar a luta pela paz durante a Guerra Fria, bem como as Conferências de Paz de Haia de 1899 e 1907, convocadas por iniciativa russa.

Se os nossos parceiros europeus tivessem mostrado a vontade política, essas conferências teriam contribuído para evitar a Primeira Guerra Mundial, que resultou numa série de catástrofes europeias e globais do século 20.

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