Descrição de chapéu The New York Times talibã

No caos do Afeganistão, desconhecidos a um mundo de distância resgatam garota queimada

Asma, 8, foi ferida por bomba de gás lacrimogêneo lançada pelos EUA para dispersar multidão no aeroporto de Cabul

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Helene Cooper
The New York Times

Nabila estava em jejum, na esperança de que Deus fizesse sua família passar pelos portões do Aeroporto Internacional de Cabul. Por isso, quando uma bomba de gás lacrimogêneo atirada por forças dos EUA que tentavam dispersar a multidão atingiu sua filha Asma, 8, ela estava fraca demais para ajudá-la.

Gritando de dor, com sua máscara facial em chamas, a menina caiu no chão. Conforme a fumaça se espalhava, Nabila também caiu e foi separada da filha na multidão de pessoas em pânico.

Naquele momento tudo pareceu perdido para Asma, cujo pai tinha sido morto pelos talibãs pelo crime de trabalhar para os militares americanos. Mas, pouco depois que a criança se feriu, uma intervenção incrível, envolvendo comandos militares secretos americanos, uma base da CIA em Cabul e três desconhecidos nos EUA começou a ganhar forma.

Grupos de afegãos se aglomeram na entrada do Aeroporto Internacional Hamid Karzai, em Cabul, na tentativa de deixar o país - Jim Huylebroek - 22.ago.21/The New York Times

Frágil, com os cabelos pretos e longos sempre puxados num rabo-de-cavalo, Asma nasceu na província de Nangarhar, de uma mãe que ainda lamentava a perda do marido, assassinado cinco meses antes. O Talibã havia ameaçado o pai de Asma por trabalhar para os americanos.

Assustado, ele deixou o emprego e foi trabalhar na Organização das Nações Unidas (ONU). Mas o Talibã o matou de qualquer forma. Nabila criou Asma e mais três filhos —outra menina e dois meninos— na esperança de que um dia pudesse levá-los para os EUA, disse ela em entrevista ao New York Times.

A morte do pai de Asma tornou os obstáculos burocráticos para a família chegar aos EUA infinitamente maiores, já que não havia um solicitante principal. Mas enquanto as tropas americanas permaneceram no Afeganistão não pareceu haver um grande motivo para partir. Alguns parentes, incluindo Yousuf, tio de Asma —que, assim como outros da família, o Times identifica só por um nome por motivos de segurança—, haviam chegado aos Estados Unidos. Mas a família de Asma continuou em seu país.

Então Cabul caiu nas mãos do Talibã, e de repente o que era uma aspiração a uma vida melhor se transformou numa questão de vida ou morte. Nabila fugiu com os filhos para a casa de uma irmã em Cabul e, às 6h30 de 19 de agosto, a família pegou um táxi e foi para o aeroporto.

Cada criança levava uma mochila com uma muda de roupas. Nabila tinha os documentos de trabalho de seu marido e um punhado de fotos da família, incluindo uma de seu noivado. Era tudo. Nenhum saco plástico transparente com líquidos para viagem. Nenhum livro favorito. Nenhuma mala.

O táxi deixou a família perto do Portão da Abadia, onde milhares de pessoas estavam agrupadas. Nabila sabia que talvez esse não fosse o melhor dia para jejuar, pois ela passaria horas fora de casa, ou mais. Mas talvez fosse o dia perfeito para o jejum. "Eu queria a absolvição divina", lembrou ela.

Cerca de 12 horas depois, com o sol já escondido e as estrelas aparecendo, a multidão no portão aumentou, empurrando a família para perto da cerca de arame concertina. Os soldados atiraram gás lacrimogêneo, e Asma foi atingida no rosto. A barra do vestido de Nabila pegou fogo quando as duas caíram.

Um irmão de Asma, Israr, correu até a mãe e a irmã e despejou água no rosto de Asma. Ele lutava para respirar entre a fumaça. A máscara da irmã estava pregada em seu rosto, terrivelmente derretida junto com a pele. Israr, com as mãos tremendo, ligou para um primo, que os pegou e levou até uma farmácia para comprar creme para queimaduras, antes de levá-los de volta à casa da irmã de Nabila. Mas o creme não atenuou as queimaduras de segundo grau na menina, que destruíram metade de seu rosto.

A 11 mil quilômetros de distância, nos Estados Unidos, o irmão de Nabila estava em casa quando recebeu uma mensagem com duas fotos do rosto de Asma. Horrorizado, Yousuf enviou as imagens para um grupo de militares veteranos, ativistas e outros cidadãos que tinham iniciado canais na plataforma Slack dias depois da queda de Cabul, para ajudar afegãos vulneráveis a sair do país. Eram pessoas de todas as classes sociais, algumas sem qualquer ligação direta com o Afeganistão.

De alguma forma, as duas fotos de Asma acabaram nas mãos de um professor de antropologia, de uma ex-atiradora da Força Aérea que se tornou assessora política e de um ex-fuzileiro naval que trabalhava como advogado do Departamento de Defesa.

Na manhã de 24 de agosto, Lee Drake, professor-assistente de antropologia na Universidade do Novo México que trabalhava ajudando refugiados afegãos, viu as fotos de Asma.

Seu cabelo estava puxado para trás, como de hábito, e ela usava uma camisa verde de gola larga, para evitar que suas roupas irritassem as queimaduras que desciam por seu pescoço até o peito.

Um dos olhos estava fechado, de tão inchado; sua sobrancelha tinha desaparecido, e metade do rosto estava em carne viva. As fotos acompanhavam uma carta de uma página, em quatro parágrafos sucintos, contando a vida de Asma. A carta terminava com: "O Talibã está procurando membros da família dela que serviram os EUA e torturando-os. Por favor ajudem a família de Asma nessa situação estressante".

A carta e as fotos "simplesmente me arrasaram", disse Drake. Ele descreveu o sofrimento de Asma em um grupo do Slack, e a primeira pessoa que respondeu foi Jason Greene, um ex-fuzileiro naval que serviu no Iraque e hoje é advogado do Departamento de Defesa.

"Asma me lembrou uma menina que morreu na batalha de Ramadi, e há muito tempo eu carrego a culpa de não ter conseguido salvar civis inocentes como ela", disse ele. "Por isso fiquei fixado em Asma."

Greene ligou para seus contatos no Comando Conjunto de Operações Especiais. Por duas vezes agentes tentaram contatar a família em Cabul, mas essas missões foram canceladas em meio ao caos. Em duas outras vezes, a família tentou voltar ao aeroporto sem ajuda, mas acabou retornando por causa dos tiros.

Então, na manhã de 26 de agosto, Israr recebeu uma mensagem que dizia: "Venham à praça do Grupo de Gás em Cabul, há uma chance de serem levados ao aeroporto". Era madrugada quando um parente os levou de carro ao ponto de encontro, onde eles esperaram durante duas horas aterrorizantes.

Por volta das 8h, uma caminhonete branca blindada encostou. O motorista, seu único ocupante, usava camiseta preta e calças cáqui. A família não sabia, mas ele era das Forças Especiais, operando a partir da Base Águia, um complexo fortificado altamente secreto da CIA perto de Cabul.

"A família de Asma?", perguntou o homem. Nabila balançou a cabeça. "Subam lá atrás", disse ele.

Eles subiram, as crianças segurando suas mochilas, e a pequena caminhonete seguiu de Cabul até os muros de três metros de altura que cercam a Base Águia. A família de Asma seria uma das últimas de afegãos que entrariam no posto avançado da CIA; as forças americanas o explodiriam poucos dias depois, quando deixaram o Afeganistão.

Os paramédicos logo levaram Asma à clínica da base. "Eles a levaram embora", lembrou Nabila. Ela havia estado aterrorizada por muito tempo, mas disse que naquele momento começou a sentir "uma calma".
A equipe na Base Águia limpou cuidadosamente os ferimentos de Asma, depois removeu a pele grossa e infeccionada. "Então eles a trouxeram de volta e disseram: 'Vocês vão para os EUA'", contou Nabila.

Naquela noite, comandos colocaram a família num helicóptero e a levaram até o aeroporto. Porém, mesmo lá a família não teve a passagem garantida. Com a ameaça de terrorismo em nível muito elevado, o governo Biden tinha deixado claro que os EUA tentariam resgatar o maior número possível de afegãos, mas estar dentro dos portões do aeroporto não garantia que eles seriam embarcados.

"Pedimos ajuda aos canadenses, que disseram que poderiam levá-los", lembrou Hanna Tripp, uma assessora de um grupo de veteranos e ex-atiradora da Força Aérea. Mas, mais tarde, Israr disse que continuavam sentados na frente de um ônibus na pista. E a bateria do telefone estava acabando.

A última mensagem que Tripp recebeu de Israr foi ao mesmo tempo esperançosa e ameaçadora. Pessoas uniformizadas os estavam escoltando para algum lugar, disse ele. Afinal, aquelas pessoas eram fuzileiros navais dos EUA, que colocaram Asma e sua família num avião C-17 para o Qatar.

A viagem de Asma "foi o símbolo que resumiu todo esse esforço". "Seu pai foi assassinado por ajudar os EUA", disse Tripp. "Ela foi atingida por gás lacrimogêneo. Em todas as fases foi uma luta e um grande esforço."

Mas Asma conseguiu. Hoje suas queimaduras estão sarando. Ela e sua família estão na Base Aérea Holloman, no Novo México (sudoeste dos EUA), onde ela lê tudo o que consegue encontrar e sonha com a América que a aguarda.

Entrevistada com sua mãe e seu irmão, parece uma menina de 8 anos feliz, cheia de vida e de planos. Quando as barreiras burocráticas forem superadas, há pessoas que dizem que não veem a hora de encontrá-la. "Essa menina é da nossa família, quer ela queira quer não", disse Tripp, referindo-se a si mesma, a Drake e a Greene. "Ela tem uma grande família disfuncional esperando para conhecê-la."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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