Putin apela a história comum para justificar ações militares na Ucrânia

Além das motivações táticas, tese do Kremlin é a de que russos e ucranianos são um único povo

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Anton Troianovski
Moscou | The New York Times

Enquanto o Kremlin acumula tropas perto da Ucrânia, sinaliza uma convicção central: a Rússia se importa mais com o destino de sua vizinha a sudoeste do que o Ocidente jamais se importará.

Em discursos, entrevistas e artigos extensos, o presidente Vladimir Putin e seus associados próximos telegrafaram uma fixação singular neste ano sobre a antiga república soviética. A tese do Kremlin é a de que os ucranianos e os russos são "um único povo", os primeiros vivendo em um Estado falido controlado por forças ocidentais decididas a dividir e conquistar o mundo pós-soviético.

Os ucranianos, que depuseram um presidente amigo da Rússia em 2014 e são cada vez mais favoráveis a ligar seu país a instituições ocidentais, discordariam, na maior parte. Mas as convicções de Putin encontram ouvidos receptivos entre muitos russos que se consideram ligados estreitamente à Ucrânia por gerações de laços linguísticos, culturais, econômicos, políticos e familiares.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante evento em Moscou
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante evento em Moscou - Mikhail Metzel - 30.nov.21/Sputnik/AFP

Hoje, com uma força de 175 mil soldados russos prontos para assumir posições próximas da Ucrânia no início de 2022, no que as autoridades ocidentais temem que seja o prelúdio de uma invasão, séculos de história comum assumem grande peso.

O jogo de Putin pode ser um frio cálculo de coerção, apoiado por sinais de que a ameaça da guerra é real —uma maneira de forçar o presidente Joe Biden, dos Estados Unidos, a reconhecer uma esfera de interesse russa no Leste Europeu. Nos últimos dias, Putin disse que a Rússia exigirá "garantias legais" de que a Ucrânia não entrará na Otan, a aliança militar do Ocidente, nem abrigará mais forças ocidentais, e ele deverá falar com Biden por videoconferência na terça-feira (7).

Mas para Putin —e muitos outros russos—, o conflito de quase oito anos com a Ucrânia não é simplesmente sobre geopolítica; é sobre uma psique nacional ferida, uma injustiça histórica a ser reparada. Um de seus ex-assessores, Gleb Pavlovsky, descreveu em uma entrevista a visão da Ucrânia pelo Kremlin como um "trauma embrulhado em um trauma" —a dissolução da União Soviética somada à separação de uma nação que os russos há muito consideravam uma mera extensão da sua.

Para muitos ucranianos, o apelo de Putin a uma história comum é uma tentativa oca de se apropriar do legado do país e de justificar ambições territoriais. "Eles roubaram nosso passado", disse Alyona Getmanchuk, diretora do Centro Nova Europa, grupo de pensadores pró-Ocidente em Kiev. "Agora estão tentando roubar nosso futuro."

Depois da revolução pró-ocidental na Ucrânia em 2014, a Rússia invadiu e então anexou a península da Crimeia e fomentou uma guerra separatista ainda em curso no leste do país. Desde então, Putin tentou evitar a inclinação da Ucrânia pelo Ocidente —e manifestou uma irritação cada vez maior com os EUA, que estão treinando e ajudando a armar soldados ucranianos.

O uso da força militar para trazer a Ucrânia de volta à influência russa prejudicaria a posição doméstica de Putin, sugerem as pesquisas —motivo pelo qual analistas russos não acreditam que o líder russo puxaria o gatilho para uma invasão que teria um preço aterrorizador nas vidas ucranianas e russas.

Mas a convicção de Putin de que os russos e os ucranianos estão injusta e artificialmente divididos é amplamente compartilhada em seu país, mesmo por adversários do governo.

Enquanto outros conflitos no mundo pós-soviético colocaram em choque grupos étnicos, aquele entre a Rússia e a Ucrânia é mais complexo. O ucraniano é a língua oficial da Ucrânia, mas o russo —que é muito parecido— ainda é amplamente usado.

Os russos muitas vezes veem Kiev, a atual capital ucraniana e antigo centro medieval de Kyivan Rus, como local de nascimento de sua nação. Autores conhecidos em língua russa, como Nikolai Gogol e Mikhail Bulgakov, vieram da Ucrânia, assim como o líder revolucionário comunista Leon Trótski e o líder soviético Leonid Brezhnev. O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, hoje fala ucraniano em público, mas ganhou fama primeiro como um comediante em língua russa que se apresentou por toda a antiga União Soviética.

"Um dos problemas colossais que nos empurram para o conflito é que a identidade russa não existe sem a identidade ucraniana", disse Ilya Ponomarev, ex-membro do Parlamento russo e único legislador a votar contra a anexação da Crimeia.​ Mais tarde fugiu para a Ucrânia, onde recebeu cidadania e ainda vive.

Milhões de russos e ucranianos têm parentes nos dois países, em parte um produto da migração na era soviética, quando a Ucrânia era uma locomotiva industrial. Por exemplo, Alexei Navalni, o líder de oposição russo preso no início deste ano, passou os verões na infância na Ucrânia, terra natal de seu pai. Embora seja um crítico da política externa agressiva de Putin, Navalni disse em 2014 que discordava dos ucranianos "para os quais é uma questão de princípio provar que somos povos diferentes". "Não vejo qualquer diferença entre russos e ucranianos, nenhuma", disse ele em uma entrevista na rádio na época.

Deixando de lado as emoções, a ideia de uma Ucrânia aliada ao Ocidente como ameaça à segurança da Rússia é amplamente compartilhada nos círculos de política externa russos.

Ivan Timofeev, diretor de programa no Conselho de Relações Internacionais da Rússia, financiado pelo governo, disse que as tropas da Otan na Ucrânia modificariam drasticamente o equilíbrio militar, apesar de a aliança já fazer fronteira com a Rússia na região do Báltico e Ártico.

"Se incluir a Ucrânia, o potencial teatro de ação militar se torna muito grande", disse Timofeev sobre a expansão da Otan. "Quanto maior a linha de frente, menos claro será de onde virá o ataque."

Em um artigo no mês passado para o Clube Valdai, um fórum de política externa com ligações estreitas com o governo russo, Timofeev disse que uma invasão total da Ucrânia pela Rússia é altamente improvável, em parte porque poderia incitar o descontentamento interno. Mesmo que a Ucrânia seja sempre uma prioridade maior para a Rússia do que para os Estados Unidos, adverte ele, as sanções ocidentais e a ajuda militar tornariam uma invasão russa extremamente dispendiosa.

Em vez de prever uma guerra maior, disse Timofeev, a escalada militar russa pretende ser um sinal para o Ocidente da extrema insatisfação do Kremlin com a expansão de sua influência na Ucrânia.

"Se a reunião com a Crimeia foi alvo de grande entusiasmo da população russa por muitos motivos, é improvável que uma grande guerra tivesse tal apoio", escreveu.

Internamente, a anexação da Crimeia fez a aprovação de Putin disparar para perto de 90% em 2014. Neste ano, o Kremlin reforçou seus ataques à liderança pró-ocidental da Ucrânia apelando para o lugar da Ucrânia na identidade russa; Putin iniciou um artigo em julho sobre por que os ucranianos e os russos são "um único povo" descrevendo suas atuais divisões como "uma grande calamidade comum".

As mensagens estão tendo impacto. A porcentagem de russos que dizem ter uma opinião negativa da Ucrânia subiu para 49% em agosto, contra 31% em fevereiro, segundo pesquisas feitas neste ano pelo Centro Levada (independente), em Moscou.

De fato, foram as políticas de Putin que voltaram grande número de ucranianos contra a Rússia, segundo Getmanchuk, a diretora do grupo de pensadores em Kiev. O apoio para aderir à Otan entre os ucranianos subiu para 54% neste ano, comparado com 14% em 2012, segundo o Centro Razumkov, instituição de pesquisa em Kiev. "Inadvertidamente, é claro, ele contribuiu para desenvolver a Ucrânia como nação."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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