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China freia empréstimos para países da África em meio a temor de calotes

Países africanos questionam cláusulas de acordos e temem confisco de bens estratégicos

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Kathrin Hille David Pilling
Taipé e Nairóbi | Financial Times

Vinte e oito de outubro foi um dia ruim para o ministro das Finanças de Uganda, Matia Kasaija.

Convocado ao Parlamento e questionado sobre as condições de um empréstimo da China de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão) para expandir o aeroporto de Entebbe, que serve à capital, Kampala, ele pediu desculpas aos legisladores reunidos. "Não deveríamos ter aceitado algumas das cláusulas", disse ele.

"Mas eles disseram 'ou você pega ou larga'."

Estava em jogo um contrato assinado seis anos antes com o Eximbank da China, que, segundo alguns legisladores, autoridades e advogados ugandenses, abala a soberania nacional.

Uma reportagem do jornal ugandense Daily Monitor chegou a sugerir que Pequim poderia confiscar o aeroporto de Entebbe, a principal porta de entrada e saída do país, no que chamou de "armadilhas da dívida" —afirmação fortemente negada pelos dois governos. A controvérsia mostra os desafios que os governos africanos e os bancos chineses enfrentam depois de uma maré de créditos de 20 anos que fez de Pequim a maior fonte de finanças para o desenvolvimento do continente.

O líder chinês, Xi Jinping, discursa durante encontro em Dacar, no Senegal
O líder chinês, Xi Jinping, discursa durante encontro em Dacar, no Senegal - Seyllou - 29.nov.21/AFP

Os bancos chineses hoje detêm quase 20% de todo o crédito para a África, concentrado em alguns países estratégicos ou ricos em recursos, como Angola, Djibuti, Etiópia, Quênia e Zâmbia.

Os empréstimos anuais atingiram o pico de US$ 29,5 bilhões em 2016, segundo números da Iniciativa de Pesquisa China-África na Universidade Johns Hopkins (EUA), embora tenham caído em 2019 para uma quantia mais modesta, mas ainda substancial: US$ 7,6 bilhões. Depois de mergulhar de cabeça no continente mais pobre do mundo, os credores chineses se tornaram mais cautelosos quando alguns países atingiram o limite de sua capacidade de endividamento e a perspectiva de moratória passou a ser real. O Fundo Monetário Internacional lista mais de 20 países africanos como altamente endividados.

Em resposta, os credores, incluindo o Eximbank da China e o Banco de Desenvolvimento da China, os dois principais bancos de investimentos do país, adotaram condições de crédito cada vez mais duras. Essas condições, algumas notavelmente diferentes das de outros credores, começam a ser testadas quando as dificuldades econômicas ligadas à pandemia impõem tensões aos países africanos mais endividados.

Xi Jinping reforçou essa advertência em um discurso em vídeo para o Fórum de Cooperação China-África, trianual, realizado no Senegal em novembro de 2021. Nos próximos três anos, disse o líder chinês, o país cortará em um terço os recursos destinados à África, para US$ 40 bilhões, e, segundo deixou entender, redirecionará o empréstimo das grandes obras de infraestruturas para dar ênfase a pequenas e médias empresas, projetos sustentáveis e investimento privados.

"A China está se afastando do paradigma de alto volume e alto risco para um modelo em que os acordos são feitos por seu próprio mérito, numa escala menor e mais administrável", dirá uma próxima análise dos empréstimos da China à África feita pela Chatham House, grupo de pensadores no Reino Unido.

Apesar desses sinais de cautela de Pequim, a controvérsia sobre o empréstimo para o aeroporto de Entebbe reflete uma crescente convicção em grande parte do Ocidente e entre alguns acadêmicos e ativistas na África de que o crédito chinês é essencialmente predatório.

Eles apontam o controle chinês do porto de Hambantota, no Sri Lanka, por meio de um aluguel por 99 anos, como evidência de um suposto controle de Pequim sobre ativos estratégicos na África. Eles também sugerem que o crédito chinês, inclusive a projetos prestigiosos, como a ferrovia de US$ 4 bilhões ligando o porto de Mombasa, no Quênia, à capital Nairóbi beneficia mais elites corruptas que cidadãos.

"O volume de crédito que alguns [governos africanos] conseguiram os torna dependentes além de qualquer noção sensata de soberania", diz Chidi Odinkalu, da Escola de Direito e Diplomacia Fletcher, na Universidade Tufts (EUA), expressando preocupações comuns sobre o volume dos empréstimos chineses e as condições envolvidas. "Você não pode culpar a China por buscar um pagamento seguro de regimes corruptos que pensam que o dinheiro pode ser grátis", acrescenta ele. "Os africanos estão fugindo das condições do Ocidente. Agora eles estão presos, por assim dizer, em uma 'muralha da China financeira'."

Cláusulas 'tóxicas'

No centro da polêmica sobre o aeroporto de Entebbe estão o que alguns analistas chamam de "cláusulas tóxicas", que exigem que a Autoridade de Aviação Civil de Uganda canalize todas as receitas para contas especiais de garantia e apresente os orçamentos para aprovação do Eximbank da China. Todo o contrato é regido pela lei chinesa, e, caso surjam disputas, elas serão resolvidas por arbitragem em Pequim.

Essa detalhada isenção de imunidade soberana levou alguns comentaristas a se preocuparem que a China possa confiscar o aeroporto se Uganda der calote. Essas preocupações refletem polêmicas semelhantes no Quênia e em Zâmbia. Embora os críticos ao empréstimo chinês tenham levantado a hipótese de ativos estratégicos serem sequestrados devido à moratória, em nenhum caso isso aconteceu.

No entanto, ao escrever sobre o acordo do aeroporto de Entebbe no Facebook em 30 de novembro, Joel Ssenyonyi, chefe da comissão parlamentar de contas públicas de Uganda, disse: "Diante da experiência de Zâmbia com seu aeroporto e a televisão nacional depois de um empréstimo chinês, e recentemente do Quênia com seu porto, não admira que os ugandenses estejam preocupados".

Esses comentários refletem o sentimento em grande parte do continente de que a China cobrará um preço pelo que até agora foi visto como um empréstimo fácil. O crédito de US$ 200 milhões para o aeroporto de Entebbe, com taxas de juros de apenas 2% e saldo em 27 anos, é barato pela maioria dos critérios.

Alguns traçam um paralelo com as instituições ocidentais, incluindo o FMI e o Banco Mundial, que emprestaram generosamente a governos africanos no pós-independência, para lhes impor duros ajustes estruturais a partir dos anos 1980, depois que os governos tiveram dificuldades para saldar as dívidas.

"Os chineses concedem empréstimos muito rapidamente e não fazem perguntas difíceis se você espancar manifestantes na rua, mas eles precisam garantir que você devolverá o dinheiro", disse Daniel Kalinaki, chefe de Redação no Nation Media Group, cujo jornal Daily Monitor revelou detalhes do contrato de Entebbe. Kalinaki diz que "cláusulas problemáticas" permitem que o Eximbank da China de fato coloque o aeroporto sob intervenção, mas também critica credores ocidentais pelo que considera práticas igualmente duvidosas, incluindo direcionar empréstimos de volta a suas próprias companhias e consultorias. "A África está sendo dividida no meio. Ela precisa escolher o caminho menos pior."

Especialistas dizem que algumas preocupações sobre as cláusulas são exageradas. Uma isenção de imunidade, por exemplo, é um componente padrão de empréstimos comparáveis feitos por governos e agências ocidentais. A maioria dos especialistas também rejeita como mito as acusações sobre supostas intenções chinesas de preparar armadilhas a mutuários e assim obter o controle de portos ou aeroportos.

"Não encontramos muitas evidências de ativos de infraestrutura física sendo colocados como garantia", disse Bradley Parks, diretor-executivo da AidData, unidade de pesquisa da Universidade William & Mary e coautor de dois estudos recentes sobre crédito chinês.

No entanto, algumas das outras condições jurídicas que acenderam alertas em Kampala —como cláusulas de marcas registradas empregadas por credores chineses— podem ser preocupações legítimas, segundo especialistas. Um estudo publicado no ano passado concluiu que os bancos estatais chineses usam cauções, penhores e contas especiais para coletar receitas do mutuário como garantia de pagamento muito mais amplamente que suas contrapartes internacionais.

Enquanto quase 30% dos cem contratos de empréstimo chineses examinados pelo estudo apresentavam tais cláusulas, só 7% dos credores bilaterais de países da OCDE, o clube dos países ricos, em uma amostra comparativa, as utilizavam. Além disso, quase 75% dos contratos chineses que usavam contas especiais exigem que o mutuário deposite todas as receitas do projeto beneficiado, exigência muito draconiana.

Detalhes do contrato de Entebbe não foram divulgados, mas dois outros acordos de empréstimo do Eximbank da China para projetos de infraestrutura assinados com o governo de Uganda meses antes do negócio do aeroporto continham dispositivos para contas de caução. Em ambos os casos, toda a receita do projeto deveria ser canalizada para uma conta de reserva de pagamento da dívida, dando aos credores chineses o direito às primeiras receitas se um mutuário se tornasse insolvente.

Essas contas de reserva de serviço da dívida, conhecidas pela sigla em inglês DSRA, não são incomuns, segundo banqueiros e peritos legais. "Nós fazemos DSRAs o tempo todo", diz uma autoridade graduada de uma agência europeia de financiamento ao desenvolvimento. No entanto, embora tais arranjos sejam comuns em financiamento de projetos com recursos limitados, em que o mutuário tem apenas um direito parcial sobre o ativo subjacente, eles são raros em acordos como o aeroporto internacional de propriedade estatal, em que o mutuário é apoiado por um estado soberano.

'Direto ao presidente'

Assim como as contas de caução, os credores chineses muitas vezes incluem cláusulas que excluem explicitamente que a dívida seja incluída em acordos de renegociação pelas autoridades do Clube de Paris, instituição que ajuda países em dificuldades econômicas.

Nem todo mundo concorda que as contas sob custódia e maior monitoramento são ruins. Os bancos chineses costumavam ser criticados por emprestar com demasiada facilidade a governos, permitindo que eles desviassem uma parte dos empréstimos para campanhas eleitorais ou contas pessoais.

Vistos sob essa lente, o escrutínio da administração e o uso de contas sob custódia no contrato do aeroporto de Entebbe poderiam ser considerados positivos. "Alguns governos africanos sentem que é muito útil", disse Hannah Ryfer, executiva-chefe da consultoria Development Reimagined, com sede na China e focada na África. "Isso cria certa responsabilidade."

No entanto, advogados que conhecem o Eximbank e o Banco de Desenvolvimento da China dizem que tal supervisão pode ser levada longe demais. "Quando os valores a serem detidos nessas contas [sob custódia] estão em alta, o tomador de empréstimo está certo de reclamar", diz um advogado que assessorou o Eximbank da China sobre documentação de crédito. "O mesmo se aplica quando o contrato dá ao banco poderes de longo alcance." Peritos legais também advertem que o uso da lei chinesa para reger empréstimos internacionais pode ser um problema se houver disputas.

"A ausência de precedentes na lei chinesa significa que haveria um amplo grau de arbítrio para os tribunais decidirem uma disputa", diz um advogado com ampla experiência em trabalho com os bancos de desenvolvimento do país. "Também é preciso considerar que a lei inglesa, a de Nova York ou mesmo a de Hong Kong, que são mais comumente usadas em finanças internacionais, [foram] desenvolvidas em jurisdições que são polos financeiros internacionais. A lei chinesa não tem isso."

Os credores chineses algumas vezes demonstraram flexibilidade em condições de empréstimos para projetos considerados politicamente importantes para Pequim, incluindo para Djibuti, um pequeno mas altamente estratégico país na costa do Mar Vermelho que emprestou muito de bancos chineses. Mas a maioria dos governos africanos teve pouca margem de manobra para modificar os termos.

Tom Ogwang, pesquisador na Universidade Mbarara de Ciência e Tecnologia, que escreveu sobre projetos de infraestrutura financiados por chineses em Uganda, diz que os tecnocratas que negociam empréstimos muitas vezes não têm poder para pressionar contra cláusulas onerosas. "Tecnicamente, temos gente muito boa que tem o conhecimento. O desafio é que há muita política em todos esses acordos", diz ele. "Os chineses vão direto ao presidente. O que eles conversam lá não sabemos."

O Parlamento de Uganda precisa assinar os empréstimos, diz Ogwang, mas os legisladores muitas vezes só veem um acordo preliminar. "Algumas cláusulas serão inseridas pelos chineses, e, então, quando o empréstimo se aproxima da data de pagamento, as autoridades querem renegociar."

Dívida ascendente

Foi o que aconteceu com Entebbe, diz ele. Em março de 2019, o governo ugandense enviou uma delegação a Pequim para renegociar condições que considerou "muito inadequadas", segundo a carta escrita por Kasaija, o ministro das Finanças, e vista pelo Financial Times. O Eximbank da China já tinha suspendido os desembolsos de empréstimo após Kampala deixar de implementar partes do contrato —atrasando as obras por um ano.

Embora o Eximbank da China tenha se recusado a emendar o acordo, ele tentou aliviar as preocupações da delegação de Uganda. O banco prometeu "flexibilizar" a condição de que toda a receita do aeroporto fosse depositada na conta de caução e retomou as alocações depois que o mutuário provou que a reserva para pagamento tinha o saldo mínimo exigido. Além disso, "esclareceu" que sua exigência de ver os orçamentos da Autoridade de Aviação Civil de Uganda tinha o objetivo de revisão, mais que de aprovação, segundo a carta de Kasaija. O Eximbank da China não respondeu a pedidos de comentários.

Analistas dizem que a reação chinesa reflete um enfoque nos relacionamentos, mais que na letra do contrato. "O que é colocado no papel e o que acontece na prática podem ser muito diferentes", diz Yunnan Chen, especialista em finanças chinesas para desenvolvimento no exterior no ODI, grupo de pesquisadores do Reino Unido. "É uma coisa muito ruim dar calote em um credor chinês, mas está na natureza das finanças chinesas ajudar o mutuário a não cair em insolvência", diz ela.

Os bancos chineses aprenderam muitas lições durante duas décadas de empréstimos a governos africanos. Nos anos 2000, eles experimentaram financiamento de infraestrutura em países ricos em recursos, como Angola e República Democrática do Congo, garantindo os empréstimos com carregamentos de petróleo ou minérios ou receitas futuras de recursos.

A tendência dos bancos de desenvolvimento chineses para contas de caução é uma versão do mesmo modelo em países como Uganda, Quênia e Etiópia, que não têm recursos naturais para garantir os reembolsos de empréstimos, segundo especialistas.

Para Tang Xiaoyang, professor na Universidade Tsinghua em Pequim, os diferentes modelos de empréstimos dos bancos chineses estão relacionados às circunstâncias específicas do país. "Os credores ocidentais podem obter lucros de outras fontes, mas para os credores chineses é difícil competir em economias avançadas. Por isso eles têm de estabelecer novos mercados mais arriscados", diz ele.

"Eles também veem mais semelhanças com a própria China nos países africanos", diz Tang. "A China saiu da pobreza muito rapidamente nos últimos 40 anos, e a infraestrutura teve um papel chave. Nós combinamos infraestrutura com industrialização, urbanização e crescimento geral, por isso temos experiência e confiança em comercializar infraestrutura."

A crescente dívida africana e as consequências econômicas da pandemia poderão obrigar os bancos chineses a adaptar suas práticas de crédito mais uma vez. Banqueiros e advogados advertem que uma crise sistêmica poderá derrubar as tentativas dos bancos chineses de proteger seus interesses por meio de contas de caução e isenção de acordos globais de reestruturação de dívida.

"A prática da China de garantir seus empréstimos com ativos soberanos faz sentido se você pensar em termos de maximizar suas perspectivas de reembolso", diz Parks, da AidData. Mas se o estresse da dívida aumentar, acrescenta ele, isso pode não ser suficiente. Depois de emitir empréstimos de 15 a 20 anos com períodos de graça de sete anos, só agora muitos empréstimos estão se aproximando de sua fase crítica, e os tomadores começam a ser testados. "Eles enfrentaram problemas com mutuários individuais, mas não passaram por uma crise de soberania global", diz. "Então eles vão aprender e se adaptarão novamente."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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