Descrição de chapéu The New York Times

Pesquisas dizem ter identificado pessoa por trás do QAnon com análise linguística

Jornalista sul-africano e candidato a deputado no Arizona são os principais suspeitos de espalhar mensagens conspiratórias

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David D. Kirkpatrick
The New York Times

"Abra os olhos", recomendou o post. "Muitas pessoas do nosso governo adoram Satanás." Publicado em outubro de 2017 num fórum de discussão livre, esse aviso foi o ponto de partida do movimento hoje conhecido como QAnon. Paul Furber foi seu primeiro apóstolo.

A alegação bizarra fazia todo o sentido do mundo para esse sul-africano desenvolvedor de softwares e jornalista especializado em tecnologia, que há anos era fascinado por política americana e teorias conspiratórias, segundo disse em entrevista.

Furber ainda propalava a chamada "Pizzagate" –a ideia desmentida de que satanistas liberais estariam traficando crianças a partir de uma pizzaria em Washington. Ele também fazia parte dos poucos que entenderam uma referência obscura feita na mensagem à chamada Operação Mockingbird, um alegado esquema da CIA para manipular a imprensa.

Apoiadores do ex-presidente Donald Trump mostram mensagens em referência à teoria conspiratória QAnon durante um comício em Las Vegas - Maio Tama - 21.fev.20/AFP

O fluxo de mensagens, a maioria assinada simplesmente com "Q", foi se convertendo em uma grande teoria conspiratória. Ao mesmo tempo, o mistério em torno de sua autoria passou a fascinar seus seguidores. Quem seria o anônimo Q?

Duas equipes de linguistas forenses agora dizem que as análises que fizeram dos textos de Q indicam que Furber, um dos primeiros comentaristas online a ter chamado atenção às mensagens iniciais, na realidade foi o principal autor delas.

Investigadores à procura do autor têm dado menos atenção a Furber, passando a concentrar suas especulações sobre outra figura que impulsiona o QAnon: Ron Watkins, que operava um site no qual as mensagens começaram a aparecer em 2018 e agora é candidato a deputado no Arizona. E cientistas dizem ter encontrado evidências para sustentar também essas suspeitas.

Watkins parece ter tomado o lugar de Furber a partir do início de 2018. Ambos negam escrever os textos de Q.

Os estudos trazem as primeiras evidências empíricas de quem inventou o mito tóxico do QAnon, e os pesquisadores esperam que o desmascaramento possa enfraquecer o fascínio que a teoria exerce sobre seus seguidores.

Algumas sondagens indicam que milhões de pessoas ainda acreditam que Q é um militar de alta patente cujas mensagens revelaram que o ex-presidente Donald Trump vai salvar o mundo de uma cabala de pedófilos democratas do chamado "estado profundo". Dezenas de incidentes violentos foram ligados ao QAnon, muitos dos invasores do Capitólio eram seguidores da teoria, e o FBI classificou o movimento como potencial ameaça terrorista.

As análises forenses não haviam sido noticiadas até agora. Dois especialistas destacados em investigação linguística reviram as conclusões das análises para o New York Times e as descreveram como persuasivas e dignas de crédito.

Em entrevista dada de sua casa próxima a Johannesburgo, Furber, 55, não negou que o estilo de escrita de Q se assemelha ao seu. Afirmou, em vez disso, que os posts o influenciaram tão profundamente que alteraram sua própria prosa. "As mensagens literalmente tomaram conta de nossas vidas", disse. "Todos começamos a falar como ele."

Especialistas linguísticos afirmam que isso é implausível, e os pesquisadores que fizeram os estudos observaram que suas análises incluíram tuítes de Furber desde os primeiros dias do surgimento de Q.

Watkins diz: "Não sou Q". Mas elogia os posts. "Há mais conteúdo bom ali do que ruim, lutando pela segurança do país e pela segurança das crianças."

Seus cartazes de campanha na primária republicana aludem ao nome que ele usa online nos círculos do QAnon, CodeMonkeyZ, e ele admitiu que boa parte do apoio inicial à sua campanha veio do movimento. Fortemente dependente de pequenos doadores, Watkins, 34, está perdendo em levantamento de fundos para os primeiros colocados nas primárias.

Duas outras republicanas que manifestaram apoio ao QAnon, Marjorie Taylor Greene, da Georgia, e Lauren Boebert, do Colorado, foram eleitas deputadas em 2020.

Uma das análises foi feita por Claude-Alain Roten e Lionel Pousaz, da startup suíça OrphAnalytics, e a outra pelos linguistas computacionais franceses Florian Cafiero e Jean-Baptiste Camps. Ambas se basearam em formas de linguística forense amplamente reconhecidas, que detectam variações particulares que revelam a mesma autoria em dois textos distintos. Por exemplo, na redação dos Papéis Federalistas, James Madison geralmente usava "whilst" em lugar de "while" (ambos significam "enquanto"), enquanto Alexander Hamilton tendia a escrever "upon" em vez de "on" ("sobre").

Em lugar de pautar-se pela opinião de especialistas, os estudos usaram uma abordagem matemática conhecida como estilometria. Softwares sofisticados decompuseram os textos de Q em padrões de sequências de três caracteres e rastrearam a recorrência de cada combinação possível.

A técnica não destaca palavras memoráveis e idiossincráticas, como frequentemente faziam linguistas forenses. Mas os proponentes da estilometria destacam que podem quantificar sua taxa de erros.

A equipe suíça disse que seu índice de precisão foi de 93%; a francesa afirmou que seu software identificou corretamente a autoria de Watkins em 99% dos testes e da Furber em 98%.

O aprendizado de máquina revelou que a criadora de Harry Potter, J.K. Rowling, escrevera "O Chamado do Cuco", de 2013, sob um pseudônimo literário. O FBI usou uma forma de estilometria para identificar Ted Kaczynski como o Unabomber. Técnicas desse tipo tem ajudado detetives nos EUA e Reino Unido a solucionar casos de homicídio que envolveram cartas suicidas e mensagens de texto falsificadas.

O jornalista de tecnologia sul-africano Paul Furber, identificado como um dos primeiros defensores do QAnon - Reprodução/EMC no Youtube

As equipes que estudaram Q se puseram em contato depois de os suíços divulgarem um estudo preliminar mostrando que o estilo de redação de Q mudara ao longo do tempo.

Elas aplicaram técnicas diferentes. Os suíços usaram softwares para medir semelhanças nos padrões de três caracteres em múltiplos textos e ao mesmo tempo compararam a complexidade de vocabulário e sintaxe. Os franceses, uma forma de inteligência artificial que aprende os padrões de escrita de um autor, mais ou menos como softwares de reconhecimento facial identificam traços faciais humanos.

As duas equipes compartilharam amostras de textos, incluindo mais de 100 mil palavras de Q e pelo menos 12 mil palavras de cada um dos outros 13 autores que analisaram.

Gerald McMenamin, da Universidade de Nevada em Reno e renomado linguista forense, diz que duvida que os softwares consigam identificar as variações individuais reveladoras no meio das particularidades da voz distintiva usada nas mensagens de Q, repletas de orações curtas, afirmações enigmáticas, jargão militar e perguntas socráticas.

Os cientistas disseram que, para evitar o perigo de textos cobrindo formas ou gêneros diferentes poderem confundir o software, eles compararam outras amostras de textos que eram todas do mesmo tipo: posts em redes sociais, principalmente tuítes. E os textos de Furber e Watkins se destacavam de todos os outros em sua semelhança com os de Q.

Ron Watkins falando com a mídia em um comício no Arizona - Gage Skidmore/Creative Commons

David Hoover, professor de língua inglesa na New York University, diz que os cientistas parecem ter resolvido a contento o problema potencial da voz particular de Q e classifica os estudos de "muito persuasivos".

"É digno de crédito", afirma o matemático Patrick Juola, da Universidade Duquesne, que identificou Rowling como a autora de "O Chamado do Cuco". "É muito convincente o fato de as duas análises independentes indicarem o mesmo padrão geral."

Nenhuma das duas equipes excluiu a possibilidade de outros autores terem contribuído para os milhares de mensagens de Q, especialmente durante o que parece ter sido um período de colaboração entre Furber e Watkins por volta do final de 2017. Mas os pesquisadores se basearem em outros fatos para limitar a lista de autores prováveis a testar. As evidências, eles disseram, elevaram a confiança de que haviam desmascarado os autores principais.

Alguns seguidores do QAnon começaram a suspeitar, ainda em meados de 2018, que um ou mais dos comentaristas que primeiro alegaram ter topado com as mensagens de Q eram na realidade os autores.

Sem conhecimento prévio, como alguém poderia ter pinçado aqueles posts quase absurdos da enxurrada online? Uma reportagem da NBC no verão daquele ano identificou os primeiros elogiadores de Q como Furber (conhecido online como Baruch the Scribe, ou escriba Baruch) e três outras pessoas. A reportagem destacou que elas tinham possíveis motivações financeiras para alimentar a mania, pois haviam pedido doações para supostas pesquisas de Q (Furber não o fez).

A equipe suíça estudou textos das quatro pessoas e também de Watkins e seu pai. Além de examinar esses seis potenciais autores, os franceses acrescentaram sete outros à lista: testaram tuítes de outro proponente online de Q ligado a Watkins e de Donald Trump, sua mulher, Melania, seu filho Eric e três pessoas próximas ao ex-presidente que haviam incentivado o QAnon: o ex-assessor de segurança Michael Flynn, o consultor político Roger Stone e o vice-chefe de gabinete da Casa Branca Dan Scavino.

"Inicialmente a maior parte dos textos é de Furber", diz Cafiero. "Mas a assinatura de Ron Watkins foi crescendo ao longo dos primeiros meses, à medida que a de Furber diminuía e depois parou completamente."

Q está em silêncio, sem postar uma mensagem desde dezembro de 2020.

Furber disse que a seu ver o QAnon é "uma operação que já deu o que tinha que dar". Disse que ainda está convencido de que ela foi orquestrada por um insider verdadeiro "para despertar as pessoas para essa imensa guerra secreta contra a cabala" e que "a próxima fase vem aí".

Num livro online de memórias, ele escreve em tom saudoso sobre os primórdios do movimento, antes de ele ter sido "sequestrado". Diz que as mensagens de Q pareciam validar teorias conspiratórias às quais ele subscrevia havia anos, vinculando os Clintons e George Soros aos Rothschilds e os Illuminati.

"Como uma criança que é levada pela primeira vez a conhecer a oficina de seu pai", ele escreve, "nos ofereceram uma visão dos bastidores do mundo repulsivo e corrupto da geopolítica".

Tradução de Clara Allain

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