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Acordo com as Farc é só o começo de um trabalho que precisa ser feito, diz Ingrid Betancourt

Candidata volta a disputar Presidência da Colômbia 20 anos após sequestro por guerrilha

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Buenos Aires

Ingrid Betancourt teve sua primeira campanha presidencial interrompida, em 2002, por um sequestro por parte das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Ficou seis anos presa, até uma operação do Exército resgatá-la. Vinte anos depois, a ex-congressista liberal volta a tentar ocupar o mesmo cargo.

A princípio, Betancourt integraria uma aliança de centro, mas desavenças com um outro integrante a afastaram do grupo, e ela concorrerá de forma independente em eleições ainda muito incertas, que, neste domingo (13), veem a realização de primárias das principais coalizões, além do pleito legislativo.

Ingrid Betancourt durante a inscrição de sua candidatura à Presidência da Colômbia, em Bogotá
Ingrid Betancourt durante a inscrição de sua candidatura à Presidência da Colômbia, em Bogotá - Jhon Paz - 10.mar.22/Xinhua

Quem lidera as pesquisas até aqui é o esquerdista Gustavo Petro. Pelo centro, disputam uma vaga o ex-candidato Sergio Fajardo, o ex-reitor da Universidad de los Andes Alejandro Gaviria e o ex-senador Juan Manuel Galán. A direita ligada ao ex-presidente Alvaro Uribe, enfraquecida, também definirá seu candidato.

Betancourt divide simpatias na Colômbia. Sua história de resiliência ao suportar o cativeiro é admirada, mas há quem veja com maus olhos o fato de ela, que pertence a uma das famílias mais ricas do país, ter pedido para ser colocada na frente da fila dos que receberiam indenizações do Estado em razão dos sequestros da guerrilha hoje transformada em partido político. Ela falou à Folha por videoconferência.

A sra. passou seis anos sequestrada pelas Farc. Como essa experiência a transformou pessoalmente? Foi uma lição de vida, em que aprendi que nada é impossível. Passaram esse tempo me dizendo que eu morreria na selva, que eu nunca mais sairia ou, se saísse, que seria muito velha. Me diziam isso todo dia, e é difícil manter a força para não acreditar que era a verdade.

Por outro lado, a mesma experiência trouxe a Operação Jaque [organizada pelo Exército, ela permitiu, em julho de 2008, a liberação de 15 sequestrados, entre os quais Betancourt]. Os soldados que aceitaram fazer parte dela sabiam que poderiam não sair vivos, e isso me tocou profundamente —que a Colômbia seja capaz de coisas assim. E nos salvaram. É quase uma parábola.

E do ponto de vista político, o que mudou da Ingrid de 20 anos atrás para a de agora? Creio que era uma política muito centrada em problemas pontuais, paroquiais da Colômbia, preocupada em apontar nomes de políticos corruptos, mas olhando menos para o conjunto das coisas. Hoje tento ver os problemas do país de modo mais global, inseridos em questões que envolvem a região, o mundo. O fato de termos sido vistos como um país problemático por tanto tempo, devido à violência, por sermos os maiores exportadores de cocaína do planeta, não é algo que nos livraremos de um dia para o outro. Há um carma e é preciso transcendê-lo, oferecer ao mundo uma visão diferente, de prosperidade, de igualdade social.

A Ingrid de hoje tem muito da Ingrid de mais de 20 anos atrás, porque ainda crê que o problema da corrupção é central. Mas vejo menos de uma visão personalista, de tratar de investigar quais são as pessoas corruptas, e mais de entender o sistema de corrupção para poder desmontá-lo.

E por onde começaria? Com a luta contra a pobreza. Com a pandemia, temos 2 milhões de colombianos que estavam na classe média e agora são pobres. Dados da FAO [órgão das Nações Unidas para a alimentação] nos colocam entre os países que podem sofrer sérias crises de fome nos próximos anos.

A pandemia foi um agravante, mas esse já era um problema. Pessoas deslocadas em razão de conflitos internos já somam mais de 6 milhões. Expulsas de suas terras pelos enfrentamentos, elas aumentam as periferias pobres das grandes cidades. Sim, eles são parte importante de uma pobreza estrutural que não conseguimos enfrentar, em que temos uma informalidade de 50%. Ou seja, em que o emprego não é um emprego, não tem garantia social, legalidade, está sujeito a abusos, chantagens e extorsões.

A sra. a princípio integrou a coalizão Centro Esperanza, mas resolveu abandoná-la. Por quê? A ideia de centro é uma realidade política e, ao mesmo tempo, uma frustração. Os colombianos, historicamente, localizam-se mais ao centro. E hoje mais do que antes querem se libertar de ideologias extremistas. Por isso concentramos forças de centro numa frente, visando essa eleição presidencial.

Creio que há pessoas de grande valor nessa coalizão, como [o ex-senador] Juan Manuel Galán, nada menos que filho de Luis Carlos Galán Sarmiento [ícone do liberalismo, assassinado num comício em 1989], um homem que quis transformar a Colômbia profundamente. Ou Sergio Fajardo [ex-prefeito de Medellín e ex-governador de Antioquia, responsável pela revitalização da região].

Porém, nesse grupo acabou entrando alguém que, a princípio, não parecia estar vinculado a forças negativas, que é Alejandro Gaviria [ex-ministro da Saúde]. Mas logo percebi que ele começava a trazer o que chamamos de "maquinárias", estruturas de poder clientelista que ajudam a eleger candidatos na Colômbia e em outros países. Sua presença me desagradou, por isso deixei a coalizão. A "maquinária", como eu defino, é uma espécie de Cavalo de Troia: disfarça-se de projeto político, mas dentro dela estão escondidos os que realmente querem ganhar benefícios no governo.

A sra. é uma defensora do acordo de paz firmado com as Farc em 2016. O que é necessário fazer para implementá-lo por completo? O acordo estabelece um caminho, mas ele precisa ser percorrido —e sem vontade política isso não ocorre. Para consolidar o tratado, precisamos estender o trabalho da JEP [Justiça Transicional, espécie de tribunal especial para crimes cometidos no período do conflito], porque o acordo estabelece que ela só existiria até 2028, e até lá não será possível julgar todos os crimes.

Outro ponto fundamental é uma reforma agrária que dê títulos de propriedade aos camponeses. Essa foi a razão do conflito nos anos 1960 e segue sendo hoje, porque ficou escrita no acordo, mas não se implementou. Os que trabalham a terra em setores de conflito precisam ter proteção do Estado, ter sua propriedade garantida, não podem ser extorquidos por grupos criminosos. Além disso, é preciso proteger a vida dos que assinaram o acordo. Não tanto a dos ex-chefões das Farc, que andam com seguranças ou estão fora do país. Mas os ex-combatentes que ficaram em suas comunidades para reintegrar-se à sociedade e são vítimas de vinganças e recrutamento forçado. Ninguém nunca afirmou que o acordo de paz era uma finalidade. É um começo de um trabalho, mas esse trabalho precisa ser feito.

A Corte Constitucional da Colômbia descriminalizou o aborto. Como vê a decisão? Sou católica e, portanto, contra o aborto. Mas como presidente jamais deixaria minhas crenças passarem por cima de decisões como essa. Creio, porém, que fomos de um extremo a outro. De ter uma lei muito restritiva [só no caso de estupros, má formação do feto e risco de morte da mãe] a uma norma com prazo muito estendido, 24 semanas. Seria melhor se seguíssemos o que já ocorre em outros países, entre 12 e 14 semanas.

Mas eu vejo como um avanço dentro de uma série de direitos que ainda estão por ser trabalhados. Na Colômbia, 40% dos lares são tocados por mães solteiras. Não protegemos as mulheres, não damos as mesmas oportunidades. A pandemia viu o número de abusos domésticos e de gravidez infantil dispararem. Há muito a ser feito, e as questões de direitos reprodutivos estão nesse contexto, mas eu gostaria de abordá-lo de modo mais amplo. Até porque o tribunal constitucional já decidiu sobre a matéria. ​


Raio-x | Ingrid Betancourt, 60

Nascida em Bogotá em 25 de dezembro de 1961, tem nacionalidade colombiana e francesa. Foi senadora nos anos 1990 pelo Partido Liberal, do qual se distanciou após fazer denúncias de corrupção interna, e hoje integra o Verde Oxígeno. Era candidata nas eleições presidenciais de 2002, contra Álvaro Uribe, mas foi sequestrada pelas Farc enquanto realizava um evento de campanha na área de Caguán. Ficou em cativeiro até 2008. Depois de libertada, passou um período na França antes de retornar à Colômbia.

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