Divididas pela guerra, famílias ucranianas se despedem com dor e culpa

Na fronteira com a Polônia, quase não há homens nem adultos mais velhos; mulheres e crianças se veem sós

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jeffrey Gettleman Monika Pronczuk
Medyka (Polônia)

Irina Dukhota está casada há 26 anos. Ela conheceu o marido quando ambos eram jovens e ele andava de bicicleta pelo bairro onde ela vivia em Kiev, a capital da Ucrânia. Mas alguns dias atrás, numa manhã cinzenta e cheia de vento, o casal estava na fronteira da Ucrânia com a Polônia, com os lábios trêmulos, enquanto milhares de pessoas corriam em volta. Depois de todos esses anos, era hora de se despedirem.

"Falei a ele ‘eu te amo’ e ‘vamos nos rever logo’", disse Dukhota, com os olhos cheios de lágrimas.

Refugiadas em ônibus em Medika após passar pela fronteira ucraniana
Refugiadas em ônibus em Medika após passar pela fronteira ucraniana - Maciek Nabrdalik - 26.fev.22/The New York Times

Agora ela diz que não sabe quando nem sequer se vai revê-lo algum dia.

Com o Exército russo invadindo a Ucrânia pelo norte, pelo sul e pelo leste, uma migração enorme de milhões de cidadãos está se formando, como uma tempestade varrendo as planícies.

Mas os portões dos postos de fronteiras internacionais são um filtro doloroso que separa as famílias. O governo ucraniano decretou que homens de 18 a 60 anos não podem sair do país; assim, as multidões que chegam à Polônia, à Hungria e a outros países vizinhos são desprovidas de homens, criando uma impressão estranha. São quase exclusivamente mulheres e crianças que passam pelos postos de controle depois das despedidas dilacerantes. Querendo ou não, os homens ucranianos voltam para lutar.

Algumas mulheres ucranianas descrevem as separações como "uma pequena morte".

Medika é um desses postos de triagem. As estradas do pequeno vilarejo na fronteira entre Polônia e Ucrânia, situado entre intermináveis campos de trigo iluminados pelo sol pálido desta época do ano, agora estão repletas de mulheres e crianças, agasalhadas contra o vento, marchando em direção oeste.

Uma explosão de nacionalismo está sendo festejada na Ucrânia. Os homens jovens e seus pais lotam os centros de recrutamento militar. Mas o clima na fronteira é muito diferente. As refugiadas dizem que se sentem separadas não apenas de seu país, mas também de suas famílias.

Falam em estarem perdidas, solitárias, confusas. Da noite para o dia, inúmeras mães viraram chefes de família numa terra estrangeira, com malas e filhos pequenos, mexendo em dois celulares ao mesmo tempo ou dando tragadas nervosas em cigarros. "Ainda não consigo acreditar que estou aqui", disse Irina Vasylevska, que acabara de deixar o marido em Berdichiv, cidade pequena no norte invadido da Ucrânia.

Obrigada agora a se virar sozinha com seus dois filhos, de 9 e 10 anos, Irina contou que está tão estressada que não dorme há dois dias nem tem conseguido comer muita coisa.

"Está tudo bloqueado", disse ela, apontando para a garganta com sua mão trêmula.

Seu marido, Volodimir, está em casa, aguardando ordens das autoridades. Ao telefone, pareceu triste por estar a centenas de quilômetros de sua mulher e dos filhos, mas ressalvou: "Meu coração está mais leve por saber que eles não vão mais ficar ouvindo o barulho das sirenes".

Outro homem, Alexei Napilnikov, havia incentivado sua mulher e filha a fugir do país, para sua própria proteção. "Esta separação é como cair no vazio. Não sei se vou voltar a vê-las alguma vez na vida."

Pela lei marcial imposta pelo governo ucraniano em 24 de fevereiro, todos os homens com entre 18 e 60 anos de idade são proibidos de sair do país, exceto se tiverem três filhos ou mais ou trabalharem em certos setores estratégicos, como a aquisição de armas para o país. Alguns homens conseguiram sair furtivamente nos primeiros momentos da guerra, mas logo depois disso guardas de fronteira ucranianos começaram a revistar os carros enfileirados na fronteira e a mandar os homens permanecerem no país.

Algumas pessoas acham essa política sexista. Também há mulheres que permaneceram para combater. Por que as famílias não podem escolher quem vai partir com os filhos, a mãe ou o pai? Questionado, um funcionário ucraniano citou a política militar do país, dizendo que, embora algumas mulheres se voluntariem para prestar serviço militar, elas não são obrigadas por lei a fazê-lo.

Mas não são apenas maridos e mulheres que estão sendo separados à força. Famílias que abrangem várias gerações também vêm sendo divididas. Existe um ditado em ucraniano que diz mais ou menos: "É bom ter filhos para ter alguém que lhe leve um copo de água quando você estiver velho". O costume no país é as pessoas viverem perto de seus pais e ajudá-los na velhice.

Mas entre as multidões que passam pelos portões de Medika e outros postos de fronteira, praticamente não se veem adultos mais velhos. A maioria deles optou por permanecer na Ucrânia. "Já passei por isto antes. O som de sirenes não me assusta", afirmou Svetlana Momotuk, 83, falando ao telefone de seu apartamento em Chornomorsk, perto do porto de Odessa.

Ela contou que, quando o marido de sua neta veio se despedir, ela gritou: "Você não vai levar meus netos embora! O que diabos está pensando?". Mas agora ela se diz aliviada por eles terem partido, apesar de sentir muita saudade. Se eles esperavam sentir alívio imenso ao deixar o país em guerra para trás e atravessar uma fronteira internacional, muitos refugiados dizem que isso ainda não aconteceu.

O que sentem, em vez disso, é culpa. Várias mulheres contaram que se sentem péssimas por terem deixado seus maridos e pais no caminho de um exército invasor. Apesar de agora estar em segurança, tendo sido acolhida por uma amiga polonesa, Dukhota revelou: "Sinto tristeza por dentro".

Seu marido é dono de uma rede de lojas de conveniência e nunca antes empunhara uma arma. Agora ele, como tantos outros ucranianos, alistou-se numa unidade de defesa local para enfrentar os russos.

Dukhota e seu marido permaneceram juntos até o último instante possível. Como eles, outros também partiram juntos de áreas que correm perigo imediato, indo a cidades como Lviv, no oeste da Ucrânia, que até agora têm sido poupadas do bombardeio implacável que devasta outras partes do país.

Algumas mulheres foram deixadas na estação ferroviária de Lviv para embarcarem num trem lotado para a Polônia. Outras contaram que seus maridos as levaram de carro até a fronteira. As mulheres contaram que nas estações de trem havia barricadas patrulhadas para assegurar que nenhum homem embarcasse.

Cada casal entrevistado se lembrou das últimas palavras trocadas. Muitos disseram pouco. Em muitos casos havia uma criança pequena, confusa e aflita, entre seu pai e sua mãe angustiados, com lágrimas escorrendo pelo rosto. "Não se preocupe, vai ficar tudo bem", foram as últimas palavras de Vasilevska para seu marido. Então ela começou a chorar e não conseguiu dizer mais nada.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.