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Maxim Osipov

Escritor russo relata dias de guerra e reflete sobre papel de seu país em conflito fratricida

Disputa entre Rússia e Ucrânia evoca passagem bíblica de Caim e Abel e expõe falsidade de Moscou

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Maxim Osipov

Escritor russo e cardiologista, teve sua obra literária, composta por contos, novelas, ensaios e peças de teatro, traduzida em uma dúzia de idiomas. Morava em Tarusa, no leste da Rússia, mas deixou o país após o início da guerra contra a Ucrânia.

"Disse o Senhor: 'O que foi que você fez? Escute! Da terra o sangue do seu irmão está clamando. Agora amaldiçoado é você pela terra, que abriu a boca para receber da sua mão o sangue do seu irmão. Quando você cultivar a terra, esta não lhe dará mais da sua força. Você será um fugitivo errante pelo mundo.'" (Gênesis 4:10-12)

Meu pai, Aleksandr Fikhman (1930–1991), nasceu em Proskuriv (renomeada Khmelnitski em 1954), no oeste da Ucrânia. Em junho de 1941, durante os primeiros dias da guerra, ele deixou a cidade natal com seus pais e suas irmãs mais velhas, para nunca mais voltar. Todos os membros de sua família que não conseguiram escapar foram mortos em Babi Yar, perto de Kiev, junto com outros 150 mil judeus.

A viagem para Kiev foi longa —11 dias de trem. Os trens foram bombardeados, e os trilhos levaram tempo para serem consertados. De Kiev, a família foi enviada para leste, para o interior do país. Meu pai falava dessa experiência com frequência, e certa vez mencionou um detalhe comovente: entre as coisas que levaram havia um volume de Lessing, o romântico alemão. Esqueci muita coisa que meu pai me disse, mas esse pequeno volume de Lessing —peças escritas na língua do inimigo— ficou na minha mente.

Refugiados ucranianos cruzam ponte na fronteira com a Polônia - Daniel Leal - 6.mar.22/AFP

Hoje em dia, muitos estão escrevendo sobre guerra, e todos pensam e falam sobre ela. Os sentimentos que prevalecem são de ódio por aqueles, ou melhor, por aquele que desencadeou esta guerra, de medo compreensível pelo futuro e de uma vergonha que não pode ser lavada pela fórmula "não em meu nome".

A isso podemos acrescentar a admiração pela resiliência do povo ucraniano e do presidente e do Exército da Ucrânia —Exército a que o governo russo se refere como um "bando de viciados em drogas e neonazistas" ou como "formações ucranianas".

Deve-se dizer que esse tipo de linguagem revela tanto a profunda falsidade do governo russo quanto sua misantropia essencial. Eles até começaram a falar na "solução para a questão ucraniana". E a guerra em si não é uma "guerra", mas sim uma "operação especial". Eles alegarão, por exemplo, que "destruíram 200 neonazistas", em vez de "mataram 200 soldados e oficiais".

Por que tentar humilhar os adversários? Especialmente aqueles que vivem, como se costuma dizer, em uma "nação fraterna"?

Sobre o tema da fraternidade: participei da pequena manifestação contra a guerra em nossa pequena cidade de Tarusa, com uma placa que dizia: "Caim, onde está seu irmão Abel?". Esta guerra deve ser chamada pelo que é: fratricida. E não se pode responder à pergunta bíblica no espírito do herói do filme cult de Alexei Balabanov, "Irmão" (1997).

"Você não é meu irmão, escória de bunda preta", diz esse herói —uma resposta que moldou a atitude de gerações inteiras de russos em relação às pessoas de aparência diferente deles, "não eslavas".

O que se sabe da guerra da Ucrânia e a invasão russa

Perguntas e respostas sobre o conflito

  1. O que quer Putin com a invasão da Ucrânia?

    A prioridade do presidente russo é evitar que a Ucrânia, ou qualquer outro país ex-soviético, entre na Otan e, de forma secundária, na União Europeia.

  2. O que a Otan tem a ver com o conflito?

    Em 2008, a aliança militar ocidental prometeu incorporar a Ucrânia e a Geórgia. Isso levou a Rússia a invadir a Geórgia meses depois e bloquear a adesão do país ao grupo.

  3. Como o Ocidente reagiu à invasão?

    Governos da Europa e dos EUA endureceram sanções contra a Rússia, enviaram armas ao Exército ucraniano e excluíram bancos russos da plataforma financeira global Swift.

  4. Como as sanções afetaram a economia da Rússia?

    O rublo caiu a mínimas históricas desde a invasão. Para conter a desvalorização da moeda, o Kremlin proibiu residente da Rússia de transferir dinheiro para o exterior.

  5. O que os russos pensam da guerra?

    Embora Putin mantenha apoio popular relevante, diversos ativistas, celebridade e até oligarcas ligados ao Kremlin criticaram a guerra, e milhares de manifestantes foram presos.

  6. Quem é Zelenski, presidente da Ucrânia alvo de Putin?

    O ator e comediante de 44 anos foi eleito líder do país após ficar famoso interpretando um presidente ucraniano em uma série de TV. Agora, lidera a resistência à invasão russa.

  7. A Ucrânia já não estava em guerra civil antes da invasão?

    Sim. Em 2014, após a queda do governo aliado do Kremlin em Kiev, Putin anexou a Crimeia e insuflou uma guerra civil no leste ucraniano que estava congelada nos últimos anos.

  8. Qual a posição do Brasil sobre o conflito?

    O presidente Jair Bolsonaro (PL) defendeu a neutralidade sobre a crise na Ucrânia. Já a diplomacia do país tem se manifestado na ONU contra a invasão pela Rússia

O clima dominante entre meus amigos é este: que terrível desonra vivemos para ver. Ainda assim, não é inédito.

"Ninguém falou de ódio aos russos. Não era ódio, pois eles não consideravam aqueles cães russos como seres humanos, mas era tanta repulsa, repugnância e perplexidade diante da crueldade sem sentido dessas criaturas, que o desejo de exterminá-los —como o desejo de exterminar ratos, aranhas venenosas ou lobos— era um instinto tão natural quanto o de autopreservação."

Esta passagem do "Hadji Murad", de Tolstói, tem raízes em uma época completamente diferente. No entanto, de tempos em tempos recupera sua relevância.

Eu jogo xadrez na internet. É uma atividade habitual, como jogar paciência ou resolver palavras cruzadas. E muitas vezes me deparo com usuários ucranianos, mas nos últimos dias, quando eles veem a bandeira russa ao lado do meu nome, escrevem "não jogo com ocupantes" ou simplesmente saem do jogo.

Essa reação é natural e correta. E nos obriga a considerar até que ponto nós, que carregamos a língua russa como parte de nossa identidade, somos responsáveis pelo que está acontecendo.

O notável poeta contemporâneo Alexei Tsvetkov oferece a seguinte parábola: "Imagine passar por um lago no qual uma criança está se afogando. Você não sabe nadar, tem certeza de que não sabe; então fica à beira da água, torcendo as mãos, enquanto a criança afunda diante dos seus olhos. Você não tem culpa, mas se não sentir remorso pelo resto da vida, alguma peça importante da maquinaria moral foi removida de você". Palavras muito precisas.

Claro, aqueles que consideram a guerra com a Ucrânia o início do colapso da Rússia estão certos. Os planos de uma pequena guerra vitoriosa, uma "blitzkrieg", desmoronaram. Governantes autoritários nunca são perdoados por guerras perdidas, mas é improvável que os resultados desta se limitem a uma mudança de governante.

A história do nosso país está chegando ao fim, mas acredito que a língua russa sobreviverá, embora seu domínio inevitavelmente diminua. Voltando ao volume de Lessing com o qual comecei, o menino que está fugindo de Kiev —não para o leste, mas na direção oposta— levará consigo um livro escrito na língua do inimigo. Talvez "A Filha do Capitão", de Pushkin, ou mesmo "Hadji Murad"? Simplesmente não sei.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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