Descrição de chapéu The New York Times

Juiz do século 17 está no centro das decisões atuais sobre direitos das mulheres

Raciocínio incorporado também nas normas sociais pode persistir, mesmo diante de aparente progresso

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Amanda Taub
The New York Times

Fazer reportagem de viagens, para mim, é sempre um exercício de encontrar semelhanças entre as diferenças: os laços de dilemas, conflitos e mudanças sociais compartilhados que unem as pessoas, não importa de que país.

Passei duas semanas na Índia, onde esse esforço acabou sendo mais claro do que eu esperava. Estive lá trabalhando em um projeto de longo prazo sobre mulheres jovens que se esforçam para encontrar um equilíbrio entre ambições em uma economia em modernização e as restrições de um sistema patriarcal que espera que elas fiquem em casa, governadas por suas famílias, maridos e sogros.

Muitas de suas lutas pareciam versões mais extremas dos dilemas enfrentados por mulheres em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos, onde cresci, e no Reino Unido, onde moro hoje.

Mulher se manifesta a favor do direito ao aborto em Washington, nos EUA
Mulher se manifesta a favor do direito ao aborto em Washington, nos EUA - Jonathan Ernst - 1.dez.2021/Reuters

Mas, inesperadamente, havia também uma ligação muito mais direta, que ficou clara quando as opiniões de importantes juízes se tornaram públicas com poucos dias de diferença, ambas baseadas no raciocínio do mesmo homem: lorde Matthew Hale, jurista inglês do século 17.

Centenas de anos atrás, suas decisões sobre direitos das mulheres no casamento e sobre seus corpos —decisões de que esses direitos deveriam ser contidos para que não se sobrepusessem aos dos homens– tornaram-se parte do direito comum do Reino Unido e, por extensão, dos EUA, da Índia e de outras colônias britânicas.

Nos EUA, o rascunho de Samuel Alito para reverter a decisão Roe vs. Wade, que vazou para a imprensa, citou Hale oito vezes. Na Índia, decisão do Supremo Tribunal de Déli se recusou a criminalizar o estupro conjugal, mantendo uma exceção legal que Hale havia codificado em um tratado no século 17. (A corte indiano se dividiu, com um juiz votando para encerrar a exceção; os peticionários pretendem recorrer.)

"É surpreendente que, em dez dias, tenhamos a decisão de Alito vazada e a decisão sobre estupro conjugal", diz Karuna Nundy, advogada que representou os requerentes no caso indiano. "Ambos remontam a uma misoginia da era colonial que as Constituições da Índia e dos EUA —que garantem direitos individuais à privacidade do corpo, à integridade corporal— anularam."

Ou pelo menos pareciam ter anulado. Mas ambos os casos mostraram como esse tipo de raciocínio, uma vez incorporado não só às decisões judiciais, mas também às normas e práticas sociais que têm o próprio poder e impulso coletivos, pode persistir, mesmo diante do aparente progresso.

O passado não está morto

Um princípio central da filosofia jurídica de Hale era que dar às mulheres direitos legalmente exigíveis sobre seus corpos era uma ameaça à liberdade dos homens. Isso fica claro em sua famosa descrição do estupro como "uma acusação fácil de ser feita, difícil de ser provada e mais difícil de ser defendida pela parte acusada, embora nunca tão inocente".

Isso se tornou a base para séculos de jurisprudência tratando o caráter moral das vítimas de estupro como a principal preocupação, muitas vezes presumindo que elas estavam mentindo se não pudessem apresentar testemunhas ou evidências externas para corroborar suas alegações.

​Hale também escreveu em um influente tratado que o estupro conjugal não poderia ser um crime porque o próprio casamento constituía um consentimento irrevogável ao sexo —apenas para a mulher. "Por seu mútuo consentimento e contrato matrimonial", escreveu, "a esposa se entregou ao marido que não pode renegar."

Essa crença era uma consequência da doutrina da cobertura: a propriedade dela passava a ser dele e ela não podia entrar com ações legais por direito próprio. A família, nessa visão, era uma esfera privada na qual o marido era essencialmente o soberano e a mulher não podia apelar à proteção do Estado.

Nos sistemas de direito comum, opiniões judiciais se tornam vinculativas, da mesma forma que leis escritas, então muitas das crenças de Hale não ficaram no passado.

Algumas estão extintas, felizmente: não realizamos mais julgamentos de bruxas, por exemplo. Mas seus pontos de vista sobre estupro, casamento e aborto, consagrados em pareceres jurídicos, tornaram-se parte do sistema legal da Grã-Bretanha e de suas colônias. E dizer que tiveram poder de permanência global seria um eufemismo. No Reino Unido, o estupro conjugal só foi criminalizado em 1991. Nos EUA, demorou até 1993 para ser crime nos 50 estados. Na Índia ainda não é criminalizado.

A hierarquia patriarcal

Mas o direito comum é apenas o mecanismo processual pelo qual essas ideias se tornaram e permaneceram leis. A história maior aqui é política.

Na Índia colonial, permitir que os homens controlassem a esfera privada tornou-se parte de uma détente instável entre autoridades coloniais e nacionalistas hindus, que viam a família como uma zona a ser protegida de estrangeiros, segundo Tanika Sarkar, historiadora indiana do direito.

Nos EUA, como escreveram vários juristas, tratar a família como esfera privada, protegida da interferência do Estado, tornou-se um escudo para a violência masculina, incluindo abuso doméstico e estupro conjugal.

E assim como a proteção da hierarquia do poder masculino se entrelaçava com a política nacionalista na Índia, nos EUA os papéis tradicionais de gênero se tornaram um elemento central da justificativa dos estados sulinos para a supremacia branca, incluindo as leis de Jim Crow.

"Para justificar e racionalizar a brutalidade contra os homens negros, eles criaram esse falso cavalheirismo e a suposta ameaça da qual mulheres brancas precisavam ser protegidas", diz Angie Maxwell, cientista política da Universidade de Arkansas. Proteger os papéis tradicionais de gênero tornou-se, assim, vinculado à proteção da hierarquia racial.

Isso significava que Roe vs. Wade e outras reformas feministas criaram uma oportunidade para o Partido Republicano: ao enquadrar o feminismo como uma ameaça à segurança, eles conseguiram ganhar apoio entre as mulheres brancas no sul. Mas essa estratégia também ajudou a cimentar a divisão na política americana entre um Partido Republicano dedicado a proteger as hierarquias existentes e um Partido Democrata que buscava principalmente reformas mais igualitárias.

Assim, enquanto citar Hale parece, por um lado, uma referência sóbria à história jurídica, por outro se lê como declaração política mais partidária: é assim que os EUA sempre foram e qualquer mudança é ilegítima.

"A estrutura do patriarcado foi exposta pela decisão vazada de Alito, e o fato de que ela não mudou, embora ambos os países tenham Constituições destinadas a proteger os direitos individuais desde então", diz Nundy. "Não mudou desde 300 anos atrás, embora ambos tenham conquistado a independência. Seria de esperar que a liberdade dessas nações soberanas também trouxesse a liberdade do corpo humano."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.