Migrantes cubanos chegam aos EUA em número recorde e a pé, não de barco

Cifra é a maior em quatro décadas, impulsionada pela piora das condições econômicas e políticas na ilha

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Maria Abi-Habib Eileen Sullivan
The New York Times

Migrantes cubanos estão chegando aos Estados Unidos no maior número visto em quatro décadas, com cerca de 150 mil previstos para chegar neste ano, de acordo com autoridades dos EUA, porque a situação econômica e política na ilha é cada vez mais desesperadora.

Durante décadas, os cubanos que tentavam fugir da repressão, da insegurança alimentar e da devastação econômica usavam barcos precários para chegar à costa dos EUA, arriscando suas vidas.

Agora, eles chegam a pé, com a fuga auxiliada pela Nicarágua, que cancelou a exigência de visto para os cubanos no final do ano passado, dando-lhes um ponto de apoio na América Central para viajarem por terra por meio do México até os EUA. Autoridades americanas acusaram o ditador nicaraguense Daniel Ortega de decretar essa política para pressionar Washington a suspender as sanções a seu país.

A migrante cubana Yaquemile, 48, chega a Roma, no estado americano do Texas, por terra após atravessar o Rio Grande, na fronteira com o México
A migrante cubana Yaquemile, 48, chega a Roma, no estado americano do Texas, por terra após atravessar o Rio Grande, na fronteira com o México - Adrees Latif - 9.abr.22/Reuters

O aumento de cubanos que tentam cruzar a fronteira sul dos EUA representa apenas uma parte dos migrantes que sobrecarregam as autoridades de fronteira, pois as travessias não autorizadas continuam aumentando sob o governo Biden. Em março, houve um recorde de duas décadas de pessoas flagradas cruzando ilegalmente em um único mês: 221.303. Desde outubro –o início do ano fiscal de 2022 para o governo americano–, quase 79 mil cubanos chegaram à fronteira sul do país, mais que nos dois anos anteriores somados, de acordo com dados da Alfândega e Proteção de Fronteiras.

Em março, mais de 32 mil cubanos chegaram à fronteira, a maioria deles viajando primeiro de avião para a Nicarágua e depois por terra para os EUA, segundo uma autoridade do Departamento de Estado, que falou sob a condição de anonimato em razão das negociações em andamento com o governo cubano.

A autoridade disse que viajar sem visto para a Nicarágua está incentivando os migrantes a usarem todas as suas economias para pagar os contrabandistas pela viagem e acrescentou que alguns estão sendo vítimas de tráfico por grupos criminosos. O descontentamento público em Cuba está fervendo desde que protestos em massa eclodiram em julho do ano passado em todo o país, devido à escalada da inflação, escassez crônica de alimentos e medicamentos e frequente falta de energia elétrica.

Durante o governo Obama, os EUA aliviaram significativamente as restrições de viagens e remessas de dinheiro para Cuba, mas elas foram ressuscitadas pelo governo de Donald Trump, causando um duro golpe econômico. As manifestações pegaram de surpresa o governo comunista de Havana, que respondeu impondo uma das maiores repressões em décadas. Mais de 700 cubanos foram acusados de participar de protestos, incluindo alguns adolescentes que receberam penas de 30 anos de prisão.

A deterioração das condições políticas e econômicas alimenta o êxodo crescente.

O governo da Nicarágua retirou a exigência de visto para Cuba em novembro, abrindo uma rota terrestre para imigrantes que hesitam em embarcar na perigosa viagem marítima até a costa dos EUA.

Desde então, o número de voos de Havana para Manágua disparou. "Estamos vendo os governos tentarem usar a migração como arma, porque sabem que isso causa perturbações políticas nos países receptores", disse Andrew Selee, presidente do Migration Policy Institute, instituto de pesquisa em Washington.

Selee e outros analistas disseram que a Nicarágua provavelmente está usando os cubanos para pressionar os EUA a suspenderem as sanções contra Ortega e seu círculo íntimo. A medida foi comparada ao cancelamento pela Belarus da exigência de visto para os iraquianos no ano passado, facilitando a entrada deles na União Europeia, em retaliação às sanções impostas devido à contestada eleição no país.

"Eles não são tolos", disse Selee. "O governo de Manágua sabia que isso forçaria os EUA a negociarem em algum momento." Ainda assim, não está claro se regras de migração mais flexíveis produziriam alguma mudança na política dos EUA. O governo da Nicarágua não respondeu às perguntas enviadas pelo New York Times. O regime de Cuba também não respondeu aos pedidos de comentários.

Muitos cubanos estão desesperados para sair, mesmo que isso signifique endividar-se para fazer uma viagem perigosa. Eles contam que vendem tudo o que têm –casas, roupas e móveis– e tomam empréstimos com altas taxas de juros para levantar os milhares de dólares de que precisam para chegar aos Estados Unidos, embora o salário médio na ilha seja de aproximadamente US$ 46 (R$ 230) por mês.

Zenen Hernández, 35, foi um dos 414 cubanos que cruzaram o Rio Grande para os EUA em 5 de abril, de um total de 1.488 migrantes que atravessaram ilegalmente aquele trecho da fronteira naquele dia. "Comida e remédios são escassos", disse Hernández, descrevendo as condições em Cuba. "É só pobreza."

O governo cubano culpa o embargo de décadas dos Estados Unidos por seus problemas econômicos.
A economia lá estava fraca antes da pandemia, mas Hernández sobreviveu vendendo pão e batata frita. No verão de 2020, a situação ficou insustentável. Quando a Nicarágua abriu suas fronteiras para os cubanos, ele decidiu que era hora de partir. "Tive que vender minha casa", disse.

O custo foi alto: US$ 16 mil para o voo até a Nicarágua e o percurso de 2.880 quilômetros para chegar aos Estados Unidos –muitas vezes a pé– pelas selvas, montanhas e rios da América Central e do México. Ao longo do caminho, os migrantes são habitualmente ameaçados e extorquidos pela polícia e perseguidos por organizações criminosas que os sequestram e espancam para obter resgate.

Quando pediram a Hernández que descrevesse sua viagem, ele engasgou ao relembrar a jornada de sofrimento. "Não tenho palavras", disse. "Eles te roubam –a polícia, os contrabandistas. Eles te roubam."

A demanda reprimida por travessias legais é outro fator que aumenta a migração. Em 2017, o governo Trump reduziu o pessoal da embaixada dos EUA em Cuba depois que uma série de problemas de saúde inexplicáveis, que ficaram conhecidos como "síndrome de Havana", afetaram seus funcionários.

A retirada forçou os cubanos a solicitarem vistos da embaixada dos EUA na Guiana, uma viagem muito cara para muitos. A medida também impediu os americanos de cumprirem a promessa de entregar 20 mil vistos de imigrantes para cubanos anualmente, parte de um acordo de 1994 para oferecer um caminho legal e desencorajar a migração irregular. Nesta semana, a embaixada dos EUA em Havana realizará as primeiras entrevistas para solicitantes de vistos de imigrante desde 2017, segundo uma autoridade.

As primeiras conversas de alto nível entre Cuba e os Estados Unidos desde 2018 ocorreram no final de abril, dedicadas a restaurar os canais regulares de migração. O governo cubano pediu a Washington que mantenha o acordo de emitir 20 mil vistos de imigrante anualmente; o governo americano solicitou que Havana comece a aceitar deportados cubanos que chegaram de forma ilegal.

A autoridade dos EUA disse que os dois lados deverão se reunir novamente dentro de seis meses.

"Se as negociações forem bem-sucedidas, elas voltarão a uma fórmula que funcionava antes, fornecendo um canal legal real e viável para os cubanos virem para os EUA, em troca da deportação daqueles que não usam o canal legal", disse Selee, do Migration Policy Institute.

"A migração é um raro ponto de cooperação entre os dois países que realmente deu certo."

Tradução de Luiz Roberto M. GonçalvesL

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