Encontro com Biden dá a Bolsonaro oportunidade de romper isolamento internacional

Brasileiro viaja à Cúpula das Américas após pedido dos EUA que indica possível mudança de postura

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Brasília e Washington

Jair Bolsonaro (PL) desembarca nos próximos dias em Los Angeles para seu primeiro encontro com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em uma agenda vista pelo Palácio do Planalto como a oportunidade para romper a imagem de isolamento e pária internacional do líder brasileiro.

A reunião, realizada em meio à Cúpula das Américas, ocorre um ano e meio após Biden chegar ao poder em Washington, período em que os dois presidentes nunca se falaram diretamente.

A inexistência de diálogo entre os chefes das duas maiores economias do continente americano não é por acaso. Até recentemente, Bolsonaro era considerado uma figura tóxica pela Casa Branca, e assessores de Biden descartaram no início do ano a possibilidade de um telefonema com o brasileiro —um encontro cara a cara estava menos ainda no radar.

O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia no Palácio do Planalto, em Brasília - Sérgio Lima - 25.mai.22/AFP

A guinada na política externa dos EUA é resultado de diferentes fatores.

No plano imediato, a possibilidade de a Cúpula das Américas se transformar em um fracasso diplomático devido à ausência dos países mais importantes da América Latina foi habilmente explorada por Bolsonaro e aliados, que valorizaram o passe da presença do brasileiro.

Mas interlocutores ressaltam que a dinâmica da relação bilateral sofreu alterações recentemente e que temas antes predominantes —como meio ambiente— perderam espaço diante de um quadro geopolítico conflagrado e marcado pela guerra da Rússia contra a Ucrânia.

"Trata-se de uma mudança muito profunda da posição dos EUA em relação ao Brasil e ao governo Bolsonaro. Significa uma concessão de legitimidade internacional, a despeito de ele [Bolsonaro] ter uma política ambiental devastadora, de afrontar a democracia e de ter uma posição muito dúbia em relação ao conflito na Ucrânia", avalia Hussein Kalout, pesquisador na Universidade Harvard e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais.

Para Paulo Abrão, pesquisador na Universidade Brown e diretor do Washington Brazil Office, a reunião bilateral será para Bolsonaro uma oportunidade de "reverter sua imagem de despreparo na arena internacional". "Ele só tem a ganhar em uma reunião cuja origem é um pedido do próprio Biden, em um contexto no qual os EUA querem o Brasil mais distante da Rússia e da China", afirma.

Bolsonaro só decidiu viajar a Los Angeles depois de receber um emissário de Biden em Brasília. Além de afirmar que o democrata aceitaria se reunir com o brasileiro à margem da cúpula, o ex-senador Christopher Dodd disse que o governo americano não pretende criar constrangimentos para o líder brasileiro durante o evento.

O Planalto entendeu a mensagem como uma promessa de que Biden não deve fazer cobranças para que Bolsonaro pare de promover ataques golpistas ao sistema eleitoral brasileiro e às urnas eletrônicas.

A possibilidade de uma cobrança do tipo era citada como uma das razões pelas quais Bolsonaro não deveria ir a Los Angeles, principalmente após a agência Reuters divulgar que, no ano passado, o chefe da CIA teria transmitido uma mensagem semelhante durante reuniões em Brasília.

Especialistas convergem na análise de que são baixas as chances de algum anúncio mais robusto após a conversa de Biden com Bolsonaro. Um sinal nessa direção é que diplomatas americanos e brasileiros não estão trabalhando em um comunicado conjunto para a ocasião.

Os efeitos serão principalmente simbólicos, e Bolsonaro parece ser o grande beneficiado. Ao tirar a foto com Biden, ele terá um forte argumento para dizer que, ao contrário do que afirmam seus críticos, não é um líder isolado e sem relevância no cenário internacional.

"A conversa entre os presidentes cobrirá uma gama ampla de tópicos. Insegurança alimentar, resposta econômica à pandemia, saúde. E o tema da mudança climática, algo que o presidente [Biden] tem deixado claro como prioridade", disse nesta semana Juan González, diretor para o Hemisfério Ocidental do Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Questionado sobre os ataques de Bolsonaro ao sistema eleitoral, González disse que os EUA confiam nas instituições locais. "A questão das eleições brasileiras é realmente algo para os brasileiros decidirem."

Perguntado sobre o mesmo tema, o embaixador Pedro Miguel da Costa e Silva, chefe da secretaria de Américas no Itamaraty, destaca que a defesa da democracia é um assunto que o governo aborda com tranquilidade.

"Um dos documentos que estamos discutindo na cúpula é sobre democracia e direitos humanos. O Brasil está participando dessa negociação desde o início, e é um tema tranquilo para nós. Os compromissos que o Brasil assumiu internacionalmente fazem com que a discussão seja muito tranquila", disse.

A pauta da reunião entre Bolsonaro e Biden será definida em última instância pelos próprios líderes, mas as diplomacias dos dois países sugerem uma gama de assuntos. Além do documento sobre democracia, a expectativa é que os líderes em Los Angeles assinem outras declarações conjuntas: sobre saúde no pós-pandemia, transformação digital, transição energética e futuro verde. Os textos ainda estão em discussão.

Há ainda uma negociação em relação a um texto sobre migração, mas trata-se de um tema delicado em que os países da região —incluindo o Brasil— dizem ser necessário equilíbrio. "O documento que sair tem que ser equilibrado para refletir as posições dos países do hemisfério, não só dos americanos. A problemática da migração não pode ser vista só do ponto de vista dos americanos", afirma Costa e Silva.

A nona edição da Cúpula das Américas, a ser realizada de segunda (6) até sexta (10), foi pensada por Washington para simbolizar o retorno da liderança dos EUA em assuntos da América Latina, após a Presidência de Donald Trump, durante a qual temas da região ficaram em segundo plano —na última cúpula, em 2018, o republicano não foi a Lima e se tornou o primeiro líder dos EUA a faltar ao encontro.

O evento, no entanto, sofreu o risco de ficar esvaziado após Bolsonaro e o presidente do México, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador, terem sinalizado que não pretendiam comparecer. Até este sábado, ao menos 15 países haviam confirmado presença, segundo levantamento do Council of the Americas.

No caso de AMLO, a possível ausência é uma resposta à decisão dos americanos de não convidarem para o encontro os líderes de Cuba, Nicarágua e Venezuela, ditaduras tratadas como párias pelos EUA.

Depois de Los Angeles, Bolsonaro deve esticar a viagem até Orlando, na Flórida, para inaugurar um vice-consulado do Brasil e encontrar apoiadores. Na mesma data devem estar na cidade o deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), que recentemente recebeu indulto presidencial de uma condenação dada pelo STF, e o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, considerado foragido pela Justiça brasileira.

Para Benjamin Gedan, diretor de América Latina no Wilson Center, o risco de esvaziamento foi um sinal claro sobre o grande ceticismo que há em relação ao encontro. "Os EUA provavelmente não vão anunciar investimentos em larga escala na América Latina ou propor novos tratados comerciais", diz.

Uma das propostas comentadas por autoridades americanas é o avanço do "nearshoring": trazer para a América Latina parte das cadeias de produção industriais hoje baseadas na Ásia. A medida ajudaria a reduzir a dependência econômica da China e a gerar empregos em países onde as pessoas querem emigrar, especialmente na América Central.

Segundo o Departamento de Estado, o setor privado já teria anunciado investimentos de pelo menos US$ 1,2 bilhão (R$ 5,7 bilhões) na América Central, depois de um chamado feito pela vice-presidente Kamala Harris em dezembro.

"Para as economias menores, esse movimento [de nearshoring] poderia servir para conter a influência econômica da China e da Rússia. Porém, a efetividade disso para o Brasil é mais complexa. A China é o nosso principal parceiro comercial atual, temos balança comercial favorável com eles e os próprios EUA são nosso maior competidor no fornecimento de commodities agrícolas para a China", avalia Abrão.


Países confirmados na Cúpula

Argentina
Brasil
Canadá
Chile
Colômbia
Costa Rica
Guiana
Equador
Estados Unidos
Panamá
Paraguai
Peru
República Dominicana
Trinidad e Tobago
Uruguai

Não foram chamados:

Cuba
Nicarágua
Venezuela

Fonte: Council of the Americas. Dados até sexta (3). As Américas reúnem 35 nações.


Alguns dos debates da Cúpula, propostos pelos EUA:


Democracia
Criar mecanismos de defesa da democracia, dar apoio a missões de observadores internacionais em eleições, reforçar combate à corrupção e proteção à imprensa e a ativistas de direitos humanos.

Saúde
Expandir o acesso a centros de atendimento, treinamento de médicos e pesquisa científica, para reforçar a proteção contra novas pandemias.

Transição energética
Criar metas de adoção de energias limpas, trocar conhecimentos técnicos e estimular parcerias entre empresas do continente.

Mudança climática
Avançar no combate ao desmatamento, com base nos termos da Declaração de Glasgow, de 2021, reduzir as emissões de carbono e a poluição das águas.

Transformação digital
Criar uma agenda regional de transformação digital, para aumentar o acesso à internet e a serviços digitais, especialmente aos mais pobres.

Imigração
​Buscar conter o fluxo de imigrantes em direção aos EUA, melhorar as condições econômicas em países pobres para desestimular a migração, ampliar a proteção a refugiados e combater coiotes e traficantes de pessoas.

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