Príncipe acusado de matar jornalista pede imunidade para viagem ao Brasil

Herdeiro da Arábia Saudita quer garantias contra possíveis ações judiciais durante encontro com Bolsonaro

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Brasília

A Arábia Saudita pediu formalmente que o Itamaraty garanta ​imunidade absoluta de chefe de Estado ao príncipe herdeiro do país, Mohammed bin Salman, durante uma possível viagem dele ao Brasil.

A praxe diplomática prevê esse recurso para que líderes não sejam processados ou atingidos por qualquer ação policial ou judicial nos países que os recebem. O caso do príncipe saudita, porém, esbarra no fato de que ele não é chefe de Estado —seu cargo oficial é de ministro da Defesa.

O pedido feito pela monarquia saudita faz parte das tratativas entre os dois países para possibilitar uma visita de MbS, como ele é conhecido, a Brasília. O encontro é um desejo de Jair Bolsonaro (PL), que disse ter "certa afinidade" com o príncipe durante viagem ao Oriente Médio em 2019.

O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, cumprimenta o príncipe Mohammed bin Salman em encontro do G20 no Japão em 2019 - Jacques Witt - 28.jun.19/Pool/AFP

MbS é acusado de ter ordenado o assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, colaborador do jornal The Washington Post. Khashoggi foi morto e desmembrado em 2018 dentro do consulado saudita em Istambul, na Turquia. Ele nega envolvimento no caso. O presidente Joe Biden, em viagem ao Oriente Médio, recebeu críticas pela possibilidade de se encontrar com o príncipe.

"[A imunidade] é a não sujeição de um ente protegido estrangeiro a autoridades locais. Ele não vai estar sujeito a leis e tribunais brasileiros", explica Carmen Tiburcio, professora titular de direito internacional privado da Uerj.

O caso de MbS tem componentes que geram dúvidas. Embora ele exerça na prática as funções de governante, o chefe de Estado é seu pai, o rei Salman bin Abdulaziz al-Saud, 86. Além disso, o crime pelo qual MbS é acusado pela inteligência americana pode ser enquadrado como violação de direitos humanos, e alguns tribunais, inclusive o STF brasileiro, consideram que essa categoria não está coberta por regras de imunidade.

"Não há dúvida que existe imunidade [no caso de Salman]", diz Tiburcio. "A dúvida é a sua extensão e se, justamente, a grave violação de direitos humanos é uma exceção a essa proteção." Procurado, o Itamaraty não respondeu à Folha. A embaixada saudita em Brasília tampouco se manifestou.

A vinda de MbS ao Brasil estava agendada inicialmente para 14 de março, mas foi suspensa. Novos preparativos foram feitos para 9 de maio, mas a viagem também acabou frustrada. Nos dois casos, segundo diplomatas ouvidos pela Folha, o cancelamento se deu a pedido da equipe do príncipe, que alegou incompatibilidade de agenda.

Agora, a expectativa do governo é receber o controverso saudita e outros líderes árabes até o fim do ano. "Estamos trabalhando para receber ainda este ano em Brasília o príncipe herdeiro da Arábia Saudita, o emir do Qatar, o rei do Bahrein e o novo presidente dos Emirados Árabes", afirmou Bolsonaro em evento da Câmara Árabe-Brasileira neste mês.

Na consulta ao Itamaraty, a Arábia Saudita não detalhou as razões do pedido de imunidade absoluta, mas esta não é a primeira vez em que o príncipe herdeiro solicita esse tipo de proteção. A organização Dawn (Democracia para o Mundo Árabe Agora) e a viúva de Khashoggi, Hatice Cengiz, são autores de uma ação nos EUA que responsabiliza MbS pelo crime. Segundo o grupo, Salman também é alvo de ação movida por um dissidente que o acusa de enviar uma equipe ao Canadá para tentar matá-lo.

Em ambos os casos, de acordo com a Dawn, o príncipe solicitou imunidade de chefe de Estado, o que o blindaria dos processos. "MbS busca se esconder atrás da doutrina legal da imunidade dos chefes de Estado para escapar da responsabilização por seu papel de executor", diz a organização.

Nos EUA, a concessão da imunidade é informada à Justiça pelo Departamento de Estado. No Brasil, caberia ao Itamaraty definir que tipo de proteção se aplica ao caso do príncipe, segundo Evandro Carvalho, professor de direito internacional da FGV-Rio. "A consulta saudita parece uma cautela excessiva, mas necessária diante das dúvidas sobre o real status do príncipe."

Para Tiburcio, não está claro se eventual garantia de imunidade do Itamaraty obrigatoriamente precisaria ser respeitada pelo Judiciário na hipótese de um mandado expedido por outro país.

As tratativas entre Arábia Saudita e o governo Bolsonaro correm em sigilo. Um interlocutor disse sob reserva que, em seu entendimento, Salman goza das imunidades de um chefe de Estado. Nesse sentido, é extremamente improvável que o príncipe, numa eventual visita ao Brasil, enfrente qualquer problema judicial pelas acusações de orquestrar o assassinato de Khashoggi.​

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