Descrição de chapéu The New York Times Rússia

Volta da vida noturna em Kiev funciona como terapia para jovens após 5 meses de guerra

Muitas pessoas estão se aventurando a sair pela primeira vez na capital da Ucrânia desde que o conflito começou

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Jeffrey Gettleman
Kiev | The New York Times

A rave já estava planejada havia semanas. O espaço tinha sido reservado, e os DJs, as bebidas, os convites e a segurança, tudo estava organizado. Mas quando um ataque recente com míssil longe das linhas de frente matou mais de 25 pessoas, incluindo crianças, na região central da Ucrânia, abalando o país profundamente, os organizadores da rave se reuniram para tomar uma decisão de último minuto.

Seria melhor adiar a festa? Em hipótese alguma, decidiram. "É exatamente isso que os russos querem", disse Dmitro Vasilkov, um dos organizadores.

Jovens dançam e sorriem durante festa em Kiev, na Ucrânia
Jovens dançam e sorriem durante festa em Kiev, na Ucrânia - Laura Boushnak - 17.jul.22/The New York Times

Então eles montaram alto-falantes enormes, ligaram o ar-condicionado e cobriram as janelas de um espaço cavernoso com grossas cortinas pretas. E abriram as portas de uma antiga fábrica de seda no bairro industrial de Kiev. Como que obedecendo a um comando, o espaço se encheu de rapazes sem camisa e mulheres jovens usando vestidos pretos justos. Todos se movimentavam como se estivessem em transe, olhando para frente, quase como se estivessem em uma igreja onde o DJ era o altar.

Estava escuro, suado, barulhento e maravilhoso. O país está mergulhado numa guerra que mexia com cada pessoa presente no recinto, mas mesmo assim elas dançaram até não poder mais.

"Esta é a cura, se você sabe como usá-la", disse Oleksii Pidhoretskii, um jovem que vive com sua avó e não saía de casa havia meses. Após um silêncio prolongado, a noite de Kiev está voltando a vibrar. Muitas pessoas estão se aventurando a sair pela primeira vez desde que a guerra começou. Para beber à beira-rio, para encontrar um amigo, para sentar-se num bar e tomar um drinque. Ou para fazer todas as três coisas.

Kiev é uma cidade repleta de jovens que estão confinados dentro de casa há dois anos, primeiro devido à pandemia de Covid e depois em razão da guerra com a Rússia. Eles anseiam por contato humano. O conflito torna essa ânsia ainda mais forte –especialmente essa guerra, em que um míssil de cruzeiro russo pode acabar com sua vida a qualquer instante, em qualquer lugar.

Jovens durante rave em Kiev, na Ucrânia
Jovens durante rave em Kiev, na Ucrânia - Laura Boushnak - 16.jul.22/The New York Times

E, agora que o verão está em pleno vapor e que os combates pesados estão concentrados principalmente no leste da Ucrânia, a centenas de quilômetros de distância, os jovens de Kiev finalmente estão tendo menos sentimento de culpa quando saem de casa.

"Era uma grande dúvida para mim: tudo bem trabalhar durante a guerra? Tudo bem servir um coquetel durante a guerra?", afirmou o barman Bohdan Chehorka. "Mas bastou o primeiro turno para eu ter a resposta. Pude enxergá-la nos olhos das pessoas. Isto daqui é uma psicoterapia para elas."

Numa cidade que já tinha fama de ser cool, a cada fim de semana vai ficando mais fácil encontrar uma festa. Um evento de hip-hop virou um mar de cabeças em movimento. A festa aconteceu ao ar livre. Choveu uma parte do tempo, mas isso não fez diferença. A festa continuou firme. A pista estava lotada.

Em toda a cidade, as mesas dos cafés nas calçadas estavam cheias. Dentro dos bares havia menos bancos vazios que algumas semanas atrás. Nas margens do rio Dnieper, que atravessa Kiev, centenas de pessoas se sentavam nas muretas, com amigos e em muitos casos com bebidas, suas silhuetas destacadas contra o pano de fundo do crepúsculo longo e de um céu azul sedoso, curtindo as maravilhas de uma noite de verão num país de clima próprio do norte.

Mas o toque de recolher pesa sobre a cidade. As festas podem estar rolando, mas a guerra também está.

Às 23h, por decreto municipal, ninguém mais pode estar na rua. Qualquer pessoa flagrada violando o toque de recolher enfrenta uma multa ou, no caso de homens jovens, uma consequência potencialmente muito mais pesada: uma ordem para se apresentar para prestar serviço militar. Isso significa que os bares fecham às 22h, para dar tempo aos funcionários de voltarem para casa. O último pedido precisa ser feito até as 21h. Por isso mesmo, as baladas começam cedo.

Bartenders cobram e preparam pedidos no Pink Freud, bar de Kiev, na Ucrânia
Bartenders cobram e preparam pedidos no Pink Freud, bar de Kiev, na Ucrânia - Laura Boushnak - 15.jul.22/The New York Times

Exemplo: a rave na antiga fábrica de seda começou às 14h30. Mas, com a batida techno e algumas outras ajudas, as pessoas disseram que conseguiram esquecer a guerra, mesmo nesse horário bizarro. Entraram no ritmo das vibrações, fecharam os olhos e conseguiram se "dissolver" e "escapar". Momentaneamente.

A guerra não é apenas uma sombra ameaçadora, mas também uma força que dirige a vida de todos, domina os pensamentos de todos, colore os ânimos de todos, mesmo que as pessoas estejam tentando realmente fazer as coisas que curtiam antes.

Os organizadores da festa de hip-hop e da rave doaram seus lucros ao esforço de guerra ou a causas humanitárias, parte da razão por que as festas foram promovidas, em primeiro lugar.

E a guerra sempre aparece em conversas casuais, como uma que aconteceu no bar Pink Freud. Um papo informal entre uma moça e o barman Chehorka, que também é psicoterapeuta, levou a uma conversa sobre hobbies, que, por sua vez, levou a uma discussão sobre livros, que inevitavelmente acabou levando aos russos. Chehorka disse à moça que estava colocando à venda sua grande coleção de livros em russo, porque nunca mais quer ler em russo. "Esta é minha própria guerra", explicou.

Ele sente que a psique inteira da cidade mudou. "Kiev está diferente agora", comentou. "As pessoas estão mais educadas, mais amistosas. Estão bebendo menos."

Pessoas se abraçam e se alongam durante festa em Kiev, na Ucrânia
Pessoas se abraçam e se alongam durante festa em Kiev, na Ucrânia - Laura Boushnak - 17.jul.22/The New York Times

Agora, quando chegamos às 22h, a cidade irradia energia nervosa. As pessoas que estão bebendo na rua ou à beira-rio olham seus relógios. Tampam as garrafas de cidra que estavam tomando, levantam-se e saem andando em passo acelerado.

Os carros começam a andar mais rápido. Mais deles atravessam o farol amarelo. Os preços dos Uber triplicam, isto é se você conseguir encontrar um Uber. Vendo a impossibilidade de conseguir uma carona, alguns jovens se despedem de seus amigos e saem para casa correndo, desesperados para não violar o toque de recolher. Às 23h, a cidade para. Nada mais se mexe. As calçadas estão vazias.

Toda aquela energia que estava crescendo, aumentando, mergulha de repente em um silêncio estarrecedor, que cobre a cidade inteira.

Tradução de Clara Allain

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