Venezuela passa Haiti como principal origem de mão de obra imigrante no Brasil

Grupo lidera no mercado formal de trabalho, recebe baixos salários e convive com disparidade de gênero

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São Paulo

Cidadãos da Venezuela têm se consolidado desde 2019 como a principal mão de obra migrante que ingressa no mercado de trabalho brasileiro, em um cenário que reflete o fluxo em massa gerado pela crônica crise econômica e humanitária no país vizinho.

Assim, há um redesenho do perfil da última década —venezuelanos estão substituindo cidadãos do Haiti e do Paraguai, que, ao menos desde 2011, eram os que mais ingressavam nos postos formais.

Imigrantes da Venezuela esperam para entrar em abrigo da Operação Acolhida, em Pacaraima, perto da fronteira com o Brasil - Mathilde Missioneiro - 4.set.21/Folhapress

De janeiro a abril, venezuelanos foram responsáveis pelo maior saldo de admissões líquidas —cifra que já subtrai o número de demissões— de uma única nacionalidade nos últimos 11 anos: 9.100.

Com isso, representam 74% do total de admissões de migrantes no mercado formal, segundo relatório do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra). Para efeitos de comparação, no mesmo período a cifra para haitianos foi de 1.116; para paraguaios, de 640.

A explicação é multifatorial. Entra na conta o volume expressivo de venezuelanos que buscam refúgio no Brasil, ingressando em especial pela região Norte. O cenário se agravou em 2016 e, no primeiro quadrimestre deste ano, venezuelanos somaram mais de 80% das 17.775 solicitações de refúgio no país.

Há também os esforços da gestão pública —ainda que com críticas— para incluir imigrantes no mercado de trabalho, por meio de estratégias como a de interiorização, que leva venezuelanos que ingressam por Roraima para outros estados com apoio de agências da ONU.

Encontrar uma vaga no mercado formal, no entanto, não anula as dificuldades. A vulnerabilidade social com que chegam ao Brasil faz com que muitos aceitem empregos mal remunerados e com condições precárias, pondera João Carlos Jarochinski, professor do mestrado em Sociedade e Fronteiras da UFRR (Universidade Federal de Roraima).

"Quando comparados com outras nacionalidades, venezuelanos têm um cenário de formação com grau de estudo mais elevado", diz. "Mas a dificuldade brasileira em pensar em políticas de revalidação de diplomas e reinserção de profissionais qualificados faz com que sejam oferecidas a essas pessoas um tipo de tarefa laboral pouco remunerada."

Aos números: a remuneração média mensal de venezuelanos no mercado brasileiro nos primeiros quatro meses do ano foi de R$ 1.596, uma das mais baixas em comparação com outras nacionalidades (o salário mínimo no país é de R$ 1.212). Há 11 anos, o valor era de R$ 8.701, mostram dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) compilados pelo OBMigra.

A diferença, explica Jarochinski, reflete a mudança no perfil da migração. Se no início da década passada ainda emigravam para o Brasil setores da elite e da classe média, muitos ligados ao setor petrolífero, hoje emigram cidadãos das camadas mais pobres e vulneráveis.

A desigualdade, como ocorre em todo o mercado formal, é refletida quando o assunto é gênero. Levantamento do projeto Moverse, ligado à ONU Mulheres e apoiado pelo governo de Luxemburgo, mostrou que o rendimento médio de pessoas da Venezuela interiorizadas é de R$ 1.450, enquanto no recorte só de mulheres venezuelanas é de R$ 1.177 —20% a menos.

Os imigrantes estão principalmente no setor de frigoríficos, no trabalho doméstico e no segmento de serviços, que têm pouco valor agregado em termos de salário, diz o professor da UFRR. Muitas vezes, substituem a própria mão de obra migrante, majoritariamente de haitianos, que tem deixado o país.

O fator também pesa na balança para entender a mudança no perfil da atuação de imigrantes no mercado formal. Bases de dados e especialistas têm constatado a saída de haitianos desde 2019. No primeiro quadrimestre daquele ano, cerca de 5.800 cidadãos do país centro-americano solicitaram refúgio no Brasil.

No mesmo período deste ano, foram 66, ainda que a nação continue a enfrentar grave crise econômica, política e social —a queda nas cifras, porém, também representa o rescaldo da pandemia de Covid, quando o volume de migrações diminuiu para todas as nacionalidades.

As razões por trás da saída de haitianos ainda estão sendo estudadas por especialistas. Jarochinski afirma que as dificuldades econômicas e a crise sanitária são fatores de peso pelo perfil da migração haitiana, de envio de remessas de dinheiro para parentes que ficaram no país.

Também há o que o docente chama de hipermobilidade: haitianos têm redes em outros países além do Brasil, como Chile e EUA. Se aqui a situação vai mal, muitos enfrentam rotas perigosas para outros destinos.

"Já para muitos venezuelanos, essa é a primeira experiência migratória. Eles saem com alto grau de vulnerabilidade, e há certo receio de tentar nova mudança." Mas o perfil, salienta, pode mudar. Com a crise venezuelana e a formação de um "país de dependentes" —com predominância de crianças e idosos, fora da idade economicamente ativa— o cenário econômico pode, em breve, forçar cidadãos da Venezuela a buscar outras rotas de migração, nas quais, aos poucos, consolidam novas redes de apoio.

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