Detentos integrados a milícia russa voltam da Ucrânia com treinamento militar e traumas

Indulto a criminosos que fizeram parte do Grupo Wagner pode desencadear violência ainda maior no país

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Anatoli Kurmanaev Alina Lobzina Ekaterina Bodiagina
The New York Times

Ele foi libertado de uma prisão russa e mandado para a Guerra da Ucrânia com a promessa de liberdade, redenção e dinheiro. Agora, Andrei Iastrebov, um de dezenas de milhares de soldados condenados por crimes, é um dos muitos combatentes que estão retornando do campo de batalha em um movimento que traz consequências potencialmente sérias para a sociedade russa.

Iastrebov, 22, vinha cumprindo pena por furto. Ele voltou para casa transformado. Um parente que falou sob anonimato, temendo represálias, disse: "É como se ele estivesse hipnotizado. Sem emoção alguma."

Defensores russos de direitos humanos e autoridades ucranianas dizem que milhares de ex-detentos foram mortos, muitos em questão de dias ou mesmo horas depois de chegar ao front. Entre os que sobrevivem e voltam para casa, a maioria guarda silêncio, temendo represálias caso se manifestem.

Anúncio mostra soldado russo com o slogan 'glória ao heróis da Rússia' em rua próxima ao prédio do PMC Wagner Centre, associado ao fundado do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin, em São Petersburgo
Anúncio mostra soldado russo com o slogan 'glória ao heróis da Rússia' em rua próxima ao prédio do PMC Wagner Centre, associado ao fundado do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin, em São Petersburgo - Olga Maltseva - 4.nov.22/AFP

A decisão do presidente russo, Vladimir Putin, de autorizar um grupo mercenário a recrutar detentos russos para reforçar seu esforço de guerra cambaleante assinala um divisor de águas em seus 23 anos de governo, afirmam ativistas dos direitos humanos e especialistas legais.

A política não condiz com os precedentes legais da Rússia e, pelo fato de enviar alguns criminosos brutais de volta para casa com indultos, corre o risco de desencadear violência ainda maior na sociedade. Tudo isso evidencia claramente o custo que Putin está disposto a pagar para evitar uma derrota.

Desde julho, cerca de 40 mil detentos entraram para as Forças Armadas russas, segundo agências de inteligência ocidentais, o governo ucraniano e a ONG de defesa dos direitos de detentos Russia Behind Bars, que compila dados de informantes em prisões. A Ucrânia diz que quase 30 mil deles desertaram ou foram mortos ou feridos, mas esse número não pôde ser confirmado de forma independente.

A maioria dos recrutados é formada por homens que cumpriam pena por pequenos delitos, como furto ou assalto, mas documentos de uma colônia penal aos quais o New York Times teve acesso mostram que entre eles havia também homens condenados por estupro com agravantes e múltiplos homicídios.

"Não há mais crimes e não há mais punições", disse Olga Romanova, diretora da Russia Behind Bars. "Hoje qualquer coisa é permissível, e isso gera consequências de longo alcance para qualquer país."

Mais de seis meses atrás a maior empresa militar privada da Rússia, o Grupo Wagner, e seu fundador, Ievgeni Prigozhin, começaram a recrutar detentos sistematicamente em escala que não era vista desde a Segunda Guerra Mundial, para reforçar o ataque sanguinário à cidade de Bakhmut, na Ucrânia. Mas a operação ainda está em grande medida envolta em sigilo e propaganda política.

Segundo advogados e ativistas de direitos humanos, o Grupo Wagner tem conseguido evitar supervisão, explorando os russos mais marginalizados: os 350 mil detentos homens de suas colônias penais brutais.

Dezenas de sobreviventes das primeiras unidades de presidiários começaram a voltar à Rússia neste mês munidos de medalhas, pagamentos consideráveis e documentos que, segundo o Grupo Wagner, lhes conferem liberdade. O número de libertações deve subir à medida que os contratos de seis meses de prestação de serviços acabam. Assim, a sociedade russa pode encarar o desafio de reintegrar milhares de homens traumatizados, com treinamento militar, histórico criminal e poucas perspectivas de emprego.

"São pessoas psicologicamente traumatizadas voltando para casa com um sentimento de estarem com a razão, com a ideia de que mataram para defender a pátria", afirmou Yana Gelmel, advogada que defende os direitos de prisioneiros russos e trabalha com detentos alistados. "Podem ser muito perigosas."

Nem Prigozhin, via assessoria de imprensa, nem o serviço carcerário russo deram declarações.

Para documentar a campanha de recrutamento, o New York Times entrevistou ativistas dos direitos humanos, advogados, funcionários da Justiça, familiares de detentos recrutados, desertores e detentos que decidiram continuar atrás das grades, mas mantêm contato com companheiros na linha de frente.

Eles descreveram um sistema sofisticado de incentivos e brutalidade do Grupo Wagner, com o apoio do Kremlin, para preencher as fileiras russas esvaziadas com métodos questionáveis e possivelmente ilegais.

Andrei Medvedev contou que entrou para a milícia dias depois de terminar de cumprir sua sentença de prisão por furto, no sul da Rússia. Ex-detento com experiência militar, ele teria sido colocado no comando de um destacamento de prisioneiros enviados em missões quase suicidas na região de Bakhmut.

Em entrevista por telefone da Rússia depois de desertar em novembro, Medvedev relatou: "Disseram: ‘Continuem até serem mortos’". Desde então ele fugiu para a Noruega, onde pediu asilo político.

A campanha para recrutar detentos começou no início de julho, quando Prigozhin começou a aparecer em prisões nas proximidades de São Petersburgo, sua cidade, levando uma proposta radical para os detentos: pagar sua dívida à sociedade com o ingresso em seu exército privado na Ucrânia. Ele próprio um ex-detento, Prigozhin entende a cultura carcerária. Combinou habilmente uma ameaça de punição com a promessa de uma vida nova, com dignidade, disseram ativistas de direitos humanos e parentes de presos.

"Ele não foi pelo dinheiro –tinha orgulho demais para isso", disse Anastasia, sobre um familiar detento recrutado pelo Grupo Wagner. "Foi porque tinha vergonha diante de sua mãe e queria limpar seu nome."

As visitas de Prigozhin a prisões levantaram questões legais imediatamente. O recrutamento de mercenários é ilegal na Rússia, e até o ano passado ele negava a própria existência do Grupo Wagner.

Segundo pedidos de informação registrados por familiares de detentos, oficialmente os presos nunca chegaram a ir à guerra –apenas foram transferidos para presídios próximos à fronteira com a Ucrânia.

Quando Anastasia, que pediu para seu sobrenome não ser usado, foi à prisão de seu parente recrutado para tentar descobrir seu paradeiro, os guardas teriam lhe dito apenas que o parente estava indisponível.

Recentemente, para aumentar o número de recrutamentos, que vêm caindo, o Grupo Wagner fez propaganda das vantagens aos combatentes que sobrevivem, divulgando vídeos de presos que retornaram do front sendo libertados. Pela Constituição russa, só Putin pode conceder um indulto, e o Kremlin não publica decretos do tipo desde 2020. Em 2021, Putin concedeu indultos a seis pessoas.

O porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, disse a jornalistas na sexta (27) que os detentos recrutados pelo Grupo Wagner estão sendo indultados "em estrita conformidade com a lei russa". Ele se negou a dizer mais nada, dando a entender que o procedimento é um segredo de Estado.

"Existem decretos abertos e decretos com graus diversos de sigilo", afirmou.

Pela lei russa, todos os pedidos de indulto são avaliados por comitês regionais especializados antes de chegarem ao Kremlin. Mas dois membros dessas comissões disseram não ter recebido nenhuma petição de detentos recrutados. Um desses funcionários representa São Petersburgo, onde vive Andrei Iastrebov.

Ativistas de direitos humanos dizem que a situação jurídica ambígua dos condenados que voltam para casa enfraquece o sistema de Justiça russo e atrela o futuro desses combatentes ao Grupo Wagner.

Após passar três semanas em casa, Iastrebov disse que já estava se preparando para voltar ao front, não obstante as taxas altíssimas de mortos e feridos na unidade de combatentes de sua prisão, segundo a Russia Behind Bars. "Quero defender a pátria", disse ele. "Gostei de tudo por lá. A vida de civil é um tédio."

Tradução de Clara Allain 

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