Descrição de chapéu Financial Times Guerra da Ucrânia Rússia

Expurgo anticorrupção na Ucrânia tem origem em ovos e pepinos superfaturados

Escândalo implodiu acordo tácito entre ativistas e governo Zelenski que vigorava desde início da invasão russa

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Christopher Miller
Kiev | Financial Times

Quando o repórter investigativo ucraniano e ativista anticorrupção Yuri Nikolov foi informado sobre um contrato de refeições superfaturado para o Ministério da Defesa, ele sabia que fazer uma reportagem poderia lhe causar problemas.

Nikolov não apenas quebraria o tabu de criticar o governo da Ucrânia durante a guerra. Ele sabia que também poderia lançar uma sombra sobre seu país em dificuldades e manchar a reputação de uma das figuras mais proeminentes: o ministro da Defesa, Oleksi Reznikov.

Mural sobre período da União Soviética parcialmente destruído após ataque em vila da região de Kherson, na Ucrânia - Genia Savilov - 28.jan.23/AFP

Nikolov procurou o ministério, mas não foi atendido, disse ele ao Financial Times. No último dia 23, publicou suas descobertas, mostrando que o ministério assinou um acordo de US$ 350 milhões com uma empresa de refeições, pagando valores altamente inflacionados por alimentos destinados às tropas ucranianas.

A história de ovos e pepinos superfaturados disparou o alarme para os ucranianos, que, segundo o Banco Central, doaram cerca de US$ 500 milhões do próprio dinheiro ao Exército. Muitos reconheceram o esquema clássico usado por autoridades para encher os bolsos. O fato de o dinheiro se destinar a alimentar seus defensores tornava tudo ainda mais escandaloso.

O escândalo da comida do exército estourou enquanto a Ucrânia implorava a seus parceiros ocidentais que lhe fornecessem tanques e outros suprimentos bélicos essenciais para combater as forças invasoras da Rússia. A candidatura do país a se tornar um estado membro da União Europeia dependerá de ser um Estado de Direito respeitado e adotar reformas anticorrupção.

Foi o primeiro dominó em uma cascata de reportagens que levariam a renúncias e demissões de altos funcionários do governo, bem como à maior reforma na administração desde o início da invasão russa.

Em questão de dias, um dos vice-chefes de gabinete do presidente Volodimir Zelenski, cinco governadores de províncias da linha de frente, quatro vice-ministros e dois membros do partido do presidente, o Servo do Povo, no Parlamento renunciariam ou seriam demitidos por causa de acusações ou comportamento corrupto.

"A corrupção é negativa em qualquer caso, mas em nossas circunstâncias, em nosso nível de desenvolvimento de nossa democracia e lutando contra a Rússia, o custo é muito alto, há pessoas morrendo todos os dias", disse o legislador Iaroslav Iurchin, primeiro vice-chefe do Comitê de Política Anticorrupção.

Ucranianos estão focados em derrotar a Rússia, disse Nikolov, "mas na verdade realmente não gostam de corrupção e também querem justiça". Soldados nas trincheiras, acrescentou, estavam entre os muitos leitores que lhe escreveram para agradecer por denunciar o esquema e bloqueá-lo antes que o pagamento fosse feito.

Reznikov negou qualquer irregularidade em um post inflamado no Facebook e passou a culpa para seu vice, Viatcheslav Chapovalov, que supervisionou as aquisições e se demitiu quando o escândalo estourou.

O principal comandante militar da Ucrânia, general Valeri Zaluzhni, pediu uma investigação completa das denúncias de corrupção, acrescentando que os militares têm "tolerância zero para a corrupção".

Iurtchin, que faz parte de um comitê parlamentar que discute políticas anticorrupção, disse ao Financial Times que a reorganização prova que as reformas anticorrupção em curso estão funcionando. "Criamos o Nabu, um tribunal anticorrupção, com um procurador especial anticorrupção, e o ProZorro" –um sistema de aquisição digital para aumentar a transparência e a concorrência, disse.

"É justo, é necessário para nossa defesa e ajuda nossa aproximação com as instituições europeias", disse Zelenski sobre a reformulação de seu governo. "Precisamos de um Estado forte, e a Ucrânia será exatamente isso."

Líderes em Bruxelas dizem que a potencial adesão da Ucrânia ao bloco de 27 membros está condicionada ao fim da corrupção. Ana Pisonero, porta-voz da Comissão Europeia, disse que essas lideranças ficaram satisfeitos com a resposta de Zelenski e "aprovam o fato de as autoridades ucranianas estarem levando essas questões a sério".

Mas ainda é necessário mais progresso nas reformas, acrescentou ela. Em particular, a UE deseja ver a reforma do historicamente problemático Tribunal Constitucional da Ucrânia e o processo de seleção de juízes.

Zelensky chegou ao poder em 2019 principalmente com a promessa de encerrar o conflito com a Rússia e combater a corrupção. No mais recente Índice de Percepção de Corrupção da Transparência Internacional, publicado pouco antes da invasão pela Rússia em 24 de fevereiro do ano passado, a Ucrânia ficou em 122º lugar entre 180 países, uma ligeira melhora em relação ao ano anterior, mas sem grandes avanços desde 2018, quando ficou em 120º lugar.

Tetiana Shevchuk, consultora do Centro de Ação Anticorrupção da Ucrânia, diz que a reorganização e repressão de Zelenski mostraram que ele está tentando cumprir sua promessa. Suas medidas também incluem a proibição de viagens de funcionários públicos ao exterior, depois que alguns deles foram pegos tirando férias luxuosas, enquanto civis de 16 a 80 anos não podem deixar o país.

"Zelenski fez isso para mostrar aos aliados que ele é sério, mas também tem a ver com seu público interno", disse Chevtchuk, acrescentando que alguns dos escândalos são conhecidos há meses.

"Havia muita tensão no país", segue. Mas a sociedade civil temia causar um clamor público sobre isso, para não prejudicar inadvertidamente o país, instigar a propaganda russa ou apresentar uma imagem da Ucrânia como um lugar corrupto para os apoiadores ocidentais."

Jornalistas ucranianos fotografaram o vice-chefe de gabinete de Zelenski, Kirilo Timochenko, em mais de uma ocasião dirigindo um novo e chamativo Porsche Taycan que vale US$ 100 mil e um veículo utilitário esportivo doado pela General Motors para assistência humanitária. Mas Timochenko renunciou apenas na terça, após a indignação pública e a promessa de Zelenski de que cabeças rolariam.

Chevtchuk diz que, até então, os ativistas anticorrupção operavam sob um "acordo tácito" com o governo. "Era o seguinte: não os criticamos desde que façam a coisa certa. Se fizerem algo errado, terão tempo para consertar seus erros."

Mas montar um esquema para roubar dinheiro do orçamento de guerra vital da Ucrânia, acrescentou ela, "cruzou a linha vermelha".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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