Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Grupo Wagner, da Rússia, reflete privatização do uso da força em conflitos

Prática preocupa analistas e comunidade internacional por potencial de aumentar crimes de guerra e facilitar impunidade

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Guarulhos

A privatização do aparato militar não é uma novidade no campo dos conflitos internacionais, tampouco surpreende acadêmicos da área que se debruçam sobre o assunto ao menos desde a Guerra do Iraque (2003-2011). Mas a prática que parece ter chegado aos confrontos no Leste Europeu preocupa pelo potencial que tem para fazer escalarem as violações humanitárias —já registradas aos montes.

A inteligência do Reino Unido e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos afirmaram, no final de março, ter informações de que ao menos mil homens do Grupo Wagner, empresa militar privada russa que muitos descrevem como mercenarismo, passou a atuar na região do Donbass, no leste da Ucrânia.

O Kremlin não se manifestou, mas, se o fizesse, era esperado que rechaçasse a informação —o governo de Vladimir Putin nega que tenha quaisquer relações com o Wagner.

Funcionário do grupo Wagner, da Rússia, que também atua na Ucrânia, ao lado de um soldado da República Centro-Africana, em Bangui - Barbara Debout - 18.mar.22/AFP

O grupo faz parte daquilo que o professor de relações internacionais da PUC-Rio Márcio Scalercio descreve como "privatização do uso da força". Ou seja, empresas cujo chão de fábrica é majoritariamente formado por ex-militares, contratados para prestar serviços de segurança (como proteger instalações minerais ou de petróleo) ou de apoio operacional em conflitos armados.

"Não se trata de uma invenção russa", diz. "Mas o Grupo Wagner tem atuado em consonância com os interesses do governo de Moscou, como na Síria e na Líbia; é uma forma de projetar poder sem correr riscos ou comprometer o governo, mas aumenta muito o risco de abusos e violações, porque os soldados não estão a serviço militar, mas sim respondendo às companhias para as quais trabalham."

Também há a zona cinzenta sobre a qual estão as empresas militares privadas e o mercenarismo no direito internacional. O receio dos analistas é o de que, como Moscou reiteradamente nega laços com o Wagner, potenciais crimes de guerra sejam ainda mais difíceis de serem julgados.

Qual o histórico da Rússia com esses grupos?

Empresas militares privadas começaram a florescer na Rússia no final dos anos 1980, em meio ao colapso da União Soviética. Com o fim da Guerra Fria e a crise financeira, o governo reduziu as forças militares ativas, o que relegou milhares de veteranos com ampla experiência disponíveis para contratação.

"Esses homens não são só trabalhadores privados ou mercenários em busca de dinheiro", diz Candace Rondeaux, diretora do programa Future Frontlines, do think tank americano New America, e membro do Centro Melikian de Estudos Russos, Eurasianos e do Leste Europeu, no mais recente estudo sobre o tema.

"São motivados tanto pelo renascimento do nacionalismo russo quanto por seu próprio deslocamento econômico e social na sociedade." E o contingente que forma grupos como o Wagner não chega a ser fixo —é comum que homens sejam contratados para serviços específicos e, depois, dispensados. Eles são proibidos de falar sobre o assunto, assim como suas famílias.

Em tese, o Código Penal russo proíbe a utilização de mercenários, o que ajuda o Kremlin a se distanciar publicamente de quaisquer ações ilegais cometidas por empresas militares privadas russas.

Mas Rondeaux diz que esses grupos têm sido fundamentais para a estratégia de guerra por procuração, ou seja, para reforçar interesses de Moscou em outras partes, notadamente o Oriente Médio e a África, onde o governo apoia nações militar e politicamente mais frágeis para atingir seus objetivos.

É documentado que o Wagner atuou na Síria, onde o governo de Vladimir Putin apoia a ditadura de Bashar al-Assad, e na Líbia, alinhado ao líder rebelde Khalifa Haftar. Também em países africanos, como Mali, Moçambique e República Centro-Africana. Neste último, relatório da ONU do ano passado relatou que grupos armados russos ajudaram o governo em casos de uso excessivo da força, assassinatos de civis, ocupação de escolas e saques em grande escala.​​

Qual a atuação prévia do Grupo Wagner na Ucrânia?

O grupo atua na Ucrânia desde 2014 no Donbass, onde estão as duas autoproclamadas repúblicas separatistas pró-Rússia de Donetsk e Lugansk —mesma região para onde, agora, Reino Unido e EUA dizem que mais mil homens foram enviados. O caso localmente conhecido como Wagnergate, de julho de 2020, simboliza bem o peso que a atuação do grupo teve na porção leste do país.

Naquela época, após meses de investigação, serviços de inteligência ucranianos colocam em prática um plano que tinha como objetivo cooptar ex-soldados do Wagner e conseguir que eles entrassem novamente no território do país para que fossem presos com base na legislação nacional pelos atos ali cometidos. Mas a ação deu errado, como mostrou extensa investigação do site jornalístico Bellingcat.

Fazendo-se passar por mercenários russos, homens da inteligência cooptaram ao menos 33 ex-agentes do Wagner que viviam na Rússia, convidando-os para um serviço de proteção de instalações de petróleo na Venezuela. Eles teriam de ir para a Belarus e, dali, pegar um voo para Caracas. A ideia era que esse voo, que por meia hora sobrevoaria o território da Ucrânia, tivesse de fazer um pouso de emergência nos arredores de Kiev —quando, então, os mercenários seriam presos.

Mas problemas de logística fizeram com que os homens ficassem mais tempo na Belarus. O país do ditador Aleksandr Lukachenko estava em meio a eleições presidenciais e grandes protestos de rua. Os ex-agentes do Wagner foram presos pela polícia belarrussa, e Lukachenko, mesmo sendo um dos principais aliados de Moscou, chegou a dizer que os homens foram enviados por Putin para desestabilizar o país.

Depois de longas tratativas diplomáticas, nas quais o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, pediu a extradição dos homens para que eles fossem julgados e Putin fez movimento similar, Lukachenko decidiu enviá-los novamente para a Rússia.

Qual tem sido a resposta internacional?

A União Europeia impôs sanções em dezembro a oito pessoas e três empresas conectadas ao Grupo Wagner, fazendo com que seus ativos em países do bloco sejam congelados e proibindo viagens para a região. A UE afirma ter informações de que o empresário russo Ievgueni Prigojin, magnata do setor gastronômico e aliado próximo a Putin, está por trás do financiamento do grupo.

Análises de institutos independentes, como o londrino Tech Against Terrorism, sugerem que membros do Wagner estão diretamente conectados com organizações de extrema direita —elemento que, de certo modo, lhe confere algo em comum com o Batalhão Azov, milícia ucraniana formada como resposta ao movimento separatista russo no Donbass e que foi, em parte, incorporada pelas Forças Armadas.

O que prevê o direito internacional?

Em teoria, a atuação de empresas militares privadas e de mercenários é coibida ou vista com extrema cautela pelo direito humanitário internacional, mas essa avaliação esbarra em um emaranhado de normas que variam significativamente de país para país.

A Convenção Mercenária das Nações Unidas, de 2001, ratificada por pouco mais de 40 nações, impede o recrutamento, treinamento, uso e financiamento de mercenários, mas não chega a detalhar a proibição do uso de empresas militares privadas por Estados soberanos.

Já o Documento de Montreux, criado em 2008 por iniciativa da Suíça e da Cruz Vermelha, reafirma a obrigação dos Estados de assegurarem que companhias militares privadas operantes em conflitos armados cumpram as regras do direito internacional, bem como assegurem que as empresas poderão ser processadas quando —e se— ocorrerem violações, como crimes de guerra.

O documento foi ratificado por 58 países e três organizações, como a União Europeia e a Otan, a aliança militar ocidental —a Ucrânia também assinou os compromissos. A Rússia, no entanto, não é signatária de nenhum tratado internacional que coíba a privatização do uso da força em guerras.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.