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Nicarágua aprova lei para tirar nacionalidade de 'traidores' depois de deportar 222 presos políticos

Opositores foram enviados aos EUA que, em disputa de versões, alegam que alvos da sentença deixaram país voluntariamente

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São Paulo

A Nicarágua anunciou nesta quinta-feira (9) a deportação para os Estados Unidos de 222 prisioneiros políticos, descritos como "traidores da pátria" em sentença lida por tribunal na capital, Manágua. Também vista, na prática, como a libertação dos opositores, a medida atende em partes a uma das principais demandas da sociedade civil desde que o país passou a perseguir e prender quem se opunha ao regime do ditador Daniel Ortega, no poder do país centro-americano desde 2007.

Quase simultaneamente à expatriação dos presos, a Assembleia Nacional do país, controlada por partidários de Ortega, aprovou em primeira votação uma lei de reforma do artigo 21 da Constituição para prever a perda de nacionalidade de quem for considerado "traidor da pátria". O movimento foi visto como uma espécie de compensação pelo que poderia ser interpretado uma demonstração de fraqueza do regime. Os direitos políticos do ex-prisioneiros também foram cassados.

Avião com 222 presos políticos que deixaram a Nicarágua chega ao Aeroporto Internacional de Dulles, próximo a Washington
Avião com 222 presos políticos que deixaram a Nicarágua chega ao Aeroporto Internacional de Dulles, próximo a Washington - WJLA TV via ABC via Reuters

Uma reforma do tipo, segundo a Constituição, precisaria passar por comissão especial e por uma segunda apreciação para ser aprovada e entraria em vigor após publicação em Diário Oficial. Logo após a primeira votação, porém, uma lei para "regular a perda da nacionalidade" foi aprovada sem dificuldades pela Assembleia, segundo o portal de notícias da instituição. De acordo com o texto, a vigência da última medida é imediata e não precisa passar por outras tramitações ou publicações oficiais.

"[Os sentenciados] violentaram por diferentes ilícitos o ordenamento jurídico e constitucional, atentando contra o Estado da Nicarágua e a sociedade nicaraguense, prejudicando o interesse supremo da nação", afirmou o juiz Octavio Rothschuh.

Utilizada nesse caso contra concidadãos, a deportação é um recurso para o retorno de migrantes em situação regular ou irregular ao seu país de origem. Existem hoje cerca de 250 opositores presos no país, que se autocratizou após as manifestações contra a reforma da Previdência proposta pelo regime de Ortega em 2018. Durante os protestos, ao menos 355 pessoas foram mortas, segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

Na última semana, a Justiça nicaraguense já havia cassado indefinidamente os direitos políticos de 14 presos do país, de acordo com denúncia do Centro Nicaraguense de Direitos Humanos (Cenidh). A sentença, emitida pela juíza Nadia Tardencilla, proibia os alvos da decisão, por toda a vida, de concorrer em quaisquer eleições ou de exercer cargos públicos.

Cristiana e Pedro Joaquin Chamorro (centro), filhos da ex-presidente nicaraguense Violeta Chamorro, ao lado de Juan Lorenzo Holmann, editor do jornal La Prensa, opositores do ditador Daniel Ortega, no avião em que foram enviados para Washington
Cristiana e Pedro Joaquin Chamorro (centro), filhos da ex-presidente nicaraguense Violeta Chamorro, ao lado de Juan Lorenzo Holmann, editor do jornal La Prensa, opositores do ditador Daniel Ortega, no avião em que foram enviados para Washington - La Prensa/AFP

Familiares dos presos e organizações da sociedade civil comemoraram a saída dos presos do país. Pelas redes sociais, a Aliança Universitária Nicaraguense afirmou que o ato dava início a uma nova fase do movimento. "Os presos foram libertados pela pressão do povo. Agora precisamos lutar para recuperar nossos direitos e democratizar a Nicarágua", escreveu a entidade.

O escritor nicaraguense Sergio Ramírez, que havia sido vice de Ortega em seu primeiro mandato no fim da década de 1980 e hoje está exilado na Espanha, comemorou a deportação, que chamou de "liberdade". "Hoje é um grande dia para a luta pela liberdade na Nicarágua, pois tantos prisioneiros injustamente condenados ou processados são libertados de prisões onde nunca deveriam ter estado. Eles vão para o exílio, mas vão para a liberdade", escreveu em seu perfil no Twitter.

Familiares e amigos também se reuniram no Aeroporto Internacional de Dulles, na região de Washington, para receber os libertados.

A mãe de Evelyn Pinto, uma ativista de direitos humanos que ficou presa desde novembro de 2021, disse sentir esperança após a libertação da filha. Lyana Barahona, que aguardava nos EUA a chegada da prima, Sueyen, também ativista de direitos humanos encarcerada havia mais de um ano, carregava uma mala com roupas para a familiar. "Estou muito feliz", disse ela à agência de notícias AFP.

Autoridades com conhecimento sobre o assunto falaram ao jornal americano The New York Times que os prisioneiros foram libertados por Manágua em uma tentativa de reaproximação com Washington, que impôs sanções ao regime e à família de Ortega diante do recrudescimento da repressão a opositores nos últimos anos.

Sob anonimato, essas autoridades disseram que foi oferecida a 224 prisioneiros, entre eles Cristiana Chamorro, filha da ex-presidente Violeta Chamorro, a possibilidade de buscar refúgio nos Estados Unidos —dois deles teriam recusado a proposta. Também há entre eles ex-militantes sandinistas que romperam com Ortega ao longo dos anos.

O Departamento de Estado americano afirmou que o país "facilitou o transporte" dos presos e assegurou que os libertados "abandonaram a Nicarágua" voluntariamente e poderão viver por dois anos nos EUA.

"A libertação desses indivíduos, um deles cidadão americano, pelo governo da Nicarágua marca um passo construtivo para se falar sobre abusos de direitos humanos no país e abre portas para aprofundar o diálogo entre EUA e Nicarágua", disse Antony Blinken, chefe da chancelaria americana.

Ainda é uma pergunta sem resposta o que acontecerá com esses opositores ao fim desses dois anos, já que eles não terão, a princípio, nem a nacionalidade nicaraguense nem a americana.

O advogado e ex-deputado da Nicarágua Enrique Sáenz qualificou a medida de "disparate", já que a reforma não passou por uma comissão especial nem foi discutida em duas votações, como manda a Constituição. "É uma palhaçada do ponto de vista legal", disse à Folha, acrescentando que a pena não poderia ser usada no caso dos agora ex-prisioneiros. "De acordo com qualquer Constituição do mundo, incluindo a da Nicarágua, nenhuma pena pode ser aplicada retroativamente."

"Foi tamanho o desespero dos deputados que eles se esqueceram de reformar este artigo da Constituição: 'Nenhum cidadão pode ser privado de sua nacionalidade. A qualidade de nicaraguense não se perde pelo fato de adquirir outra nacionalidade'."' No final da tarde, porém, o texto da Carta já havia sido modificado no site da Assembleia.

Para Sáenz, a manobra pretende tirar o passaporte nicaraguense dos ativistas, dificultando a mobilização nacional. Envia também a mensagem de que opositores não poderão participar da vida política do país.

No final da década de 1970, Ortega foi um dos líderes da Revolução Sandinista que derrubou a ditadura dos Somoza. Após a queda da dinastia, participou da primeira junta que liderou o país, entre 1979 e 1990, quando saiu pacificamente do poder. Ele voltou à Presidência em 2007 e desde então tenta inviabilizar a oposição.

Nas eleições de 2021, quando foi reconduzido ao cargo pela quarta vez consecutiva, os sete postulantes de oposição estavam presos, acusados de lavagem de dinheiro e traição à pátria.

Com AFP e Reuters

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