Após um discurso inflamado em seu primeiro dia na República Democrática no Congo, o papa Francisco diminuiu o tom, mas manteve o enfoque político ao rezar uma missa em Kinshasa nesta quarta-feira (1º).
Mais de um milhão de pessoas compareceram ao evento, realizado na pista de um aeroporto voltado para membros do governo. Milhares dos presentes passaram a madrugada no local à espera do pontífice.
Se, na véspera, Francisco apontou o dedo para a comunidade internacional —segundo ele, culpada de submeter o país africano a um "colonialismo econômico" e fechar os olhos para as consequências— , desta vez ele se voltou à violência que assola a RDC há décadas —dados da ONU indicam que conflitos armados desalojaram 5,7 milhões de congoleses internamente e levaram quase um quarto da população de 96 milhões a enfrentar níveis severos de fome.
"A todos os habitantes deste país que chamam a si mesmos de cristãos, mas usam a violência, o Senhor está lhes dizendo: 'Baixem suas armas, abracem a piedade'", disse o pontífice, acrescentando que Deus desejava que seus fiéis tivessem "a coragem de conceder uns aos outros uma grande anistia do coração".
Na audiência, diversas mulheres usavam vestidos estampados com o rosto do líder da Igreja Católica, obedecendo a uma tradição de muitos países africanos de honrar dignatários, enquanto crianças assistiam à missa empoleiradas em um avião em busca de um ângulo melhor.
Francisco ainda afirmou que os congoleses sofrem com "feridas que ardem, continuamente infectadas por ódio e violência, enquanto a justiça e o bálsamo da esperança parecem nunca dar as caras". "Que bem faria limpar nossos corações do ódio e do remorso, de cada traço de ressentimento e de hostilidade."
Mais tarde, em um encontro com vítimas dos conflitos locais, o pontífice voltou a aludir às declarações duras que havia feito na véspera sobre a ligação entre a violência armada e a exploração dos recursos na RDC. Francisco pretendia ir pessoalmente à Goma, cidade no nordeste congolês que é um dos focos de disputa entre milícias e o governo, mas foi impedido justamente pelo aumento dos ataques na região.
"Esta é, acima de tudo, uma guerra desencadeada por uma ganância insaciável por matérias-primas", disse ele após ouvir relatos de estupros, amputações, escravidão sexual e canibalismo forçado. "Que escândalo e que hipocrisia. As pessoas estão sendo estupradas e assassinadas, enquanto o comércio por trás disso segue florescendo."
A viagem do papa se insere em um momento de aumento dos episódios sangrentos na ex-colônia belga, que assiste a guerras contínuas por disputas de minerais como coltan, usado em produtos eletrônicos.
Mais recentemente, o ressurgimento do grupo armado M23, que conquistou amplas faixas territoriais na fronteira com Ruanda, tem multiplicado os casos do tipo. Há ainda a presença de grupos terroristas como o Estado Islâmico (EI). A violência no país vem, porém, de muito antes, e inclui rebeliões no exterior que tiveram a RDC como base, disputas identitárias, sobretudo em relação a grupos falantes de idiomas ruandenses, e a incapacidade do Estado de lidar com os mais de cem grupos armados no território.
A visita do papa —a primeira de um pontífice à RDC desde os anos 1980, quando o país ainda se chamava Zaire— estava inicialmente prevista para o último mês de julho. Teve de ser adiada, no entanto, devido às dores no joelho do líder de 86 anos, que tem usado uma cadeira de rodas para se locomover.
A RDC é a parada inicial de um giro do papa pelo continente e marca a convergência de interesses da Igreja Católica na região —o olhar aos refugiados e aos recursos naturais, o movimento em direção a países tratados como periféricos e a interlocução com jovens católicos para conter o declínio de fiéis.
Francisco continua em Kinshasa até a manhã de sexta (3), quando viaja para o Sudão do Sul, o país mais jovem do mundo e também um dos mais pobres. Lá, será acompanhado pelo arcebispo de Canterbury e o moderador da Igreja da Escócia, em uma conjunção inédita dos três líderes cristãos no exterior.
Milícias atuantes na República Democrática do Congo
- M23: O nome faz referência a 23 de março, data em que, em 2009, foi assinado um acordo que encerrou uma revolta liderada por representantes da etnia tutsi no leste do Congo. O grupo afirma que o Estado não manteve sua promessa de reintegrar completamente os tutsi congoleses ao Exército e ao governo. Desde março de 2022, vem abocanhando novos territórios na direção de Goma, forçando mais de 500 mil pessoas a se deslocarem.
- Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda (FDLR): Grupo armado liderado sobretudo por representantes da etnia hutu que fugiram de Ruanda após o genocídio de 1994. É considerado o principal rival do M23. Ruanda acusa a RDC de usar a FDLR para atingir seus interesses, enquanto a RDC acusa Ruanda de apoiar o M23 —ambos os lados negam as acusações.
- Cooperativa para o Desenvolvimento do Congo (Codeco): Membros vêm principalmente da comunidade agrícola de Lendu e têm protagonizado embates com os pastores de Hema. São vistos como um dos grupos mais violentos contra a população civil; uma missão de paz da ONU no país responsabilizou a milícia por uma vala comum com 49 corpos, incluindo 12 mulheres e seis crianças, encontrada em 19 de janeiro.
- Forças Democráticas Aliadas: Milícia vinculada ao Estado Islâmico (EI), matou e mutilou dezenas de pessoas em roubos e bombardeios em vilarejos. O grupo é suspeito de ter assassinado outras 20 em um ataque na semana passada, e mais 14 em um atentado a bomba em uma igreja.
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