Guerra da Ucrânia põe neutralidade da Suíça à prova depois de séculos

País conhecido por se abster de apoiar lados em conflitos fabrica armas que aliados ocidentais querem enviar para Kiev

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Erika Solomon
Berna (Suiça) | The New York Times

Na Europa Oriental, os ucranianos estão nas trincheiras. Mais a oeste, as capitais europeias se debatem com uma nova ordem na qual a guerra deixou de ser teórica. No entanto, escondidos no coração do continente, os suíços estão preocupados com ideais mais elevados.

Na capital da Suíça, aninhada sob montanhas cobertas de neve, em câmaras parlamentares com vitrais e madeira polida, o debate é sobre o legado de neutralidade do país –e o que significa neutralidade em uma nova era de guerra na Europa.

Manifestante agita bandeira ucraniana em frente ao Parlamento suíço, em Berna, durante protesto que reuniu 10 mil pessoas contra a guerra - Fabrice Coffrini - 2.abr.2022/AFP

Acontece que a Suíça tem uma indústria que produz munição extremamente necessária para algumas armas que os europeus forneceram à Ucrânia, bem como alguns dos principais tanques de batalha Leopard-2 que eles prometeram.

Mas também tem regras estritas sobre o destino dessas armas –principalmente uma lei, agora objeto de acalorado debate, que proíbe qualquer nação que compre armas suíças de enviá-las para um país em conflito, como a Ucrânia.

A guerra está testando a tolerância suíça por ficar à margem e servir a elite mundial em igualdade de condições, colocando o país num dilema de interesses paralelos.

Seus fabricantes de armas dizem que a incapacidade de exportar agora pode tornar impossível manter clientes ocidentais críticos. Vizinhos europeus estão puxando os suíços numa direção, enquanto a tradição de neutralidade puxa em outra.

"Ser um estado neutro que exporta armas é o que colocou a Suíça nessa situação", disse Oliver Diggelmann, professor de direito internacional da Universidade de Zurique. "Ela quer exportar armas para fazer negócios. Quer afirmar o controle sobre essas armas. E também quer ser o mocinho. É aí que nosso país está tropeçando agora."

A Suíça conseguiu manter a neutralidade durante séculos e em duas guerras mundiais. Essa posição é apoiada por 90% de seus 8,7 milhões de habitantes, que a defendem como um ideal nacional. Anfitriões da ONU e da Cruz Vermelha em Genebra, eles se consideram os pacificadores e humanitários do mundo.

Mas as nações ocidentais hoje veem a hesitação suíça –tanto sobre exportações quanto sobre sanções contra a Rússia, que diplomatas ocidentais suspeitam que a Suíça não está fazendo o suficiente para impor– como evidência de que a motivação do país é menos idealismo do que negócios.

A Suíça, cujos bancos são notórios pelo sigilo e frequentemente acusados de lavar dinheiro para a classe cleptocrática do mundo, ainda é o maior centro mundial de riqueza offshore. Isso inclui cerca de um quarto do total global, sem dúvida servindo a muitos oligarcas russos aliados ao presidente Vladimir Putin.

Uma importante autoridade ocidental, que não quis ser identificada porque estava negociando com os suíços, disse que a situação atual fez os diplomatas ocidentais sentirem que a Suíça está buscando "uma neutralidade de benefícios econômicos".

Meses de hesitação não tornaram a nação alpina apreciada por seus vizinhos.

"Todo mundo sabe que isso está prejudicando a Suíça. A União Europeia inteira está aborrecida. Os americanos estão contrariados. O ressentimento também vem dos russos. Todos sabemos que isso está nos prejudicando", disse Sacha Zala, historiador da neutralidade suíça da Universidade de Berna. "Mas mostra o quão profunda é essa crença na neutralidade em nossas cabeças."

Para os historiadores, a neutralidade da Suíça tem muito mais a ver com travar uma guerra do que evitá-la.

Da Idade Média ao início da era moderna, os então empobrecidos cantões alpinos que compõem a Suíça de hoje alugavam mercenários em guerras por toda a Europa. Muitos faziam armas para acompanhar esses exércitos; a Guarda Suíça do Vaticano é uma relíquia daquela época.

"A ideia anterior de neutralidade era a neutralidade para servir a ambos os lados", disse Zala.

A neutralidade suíça começou a ser formalizada após as guerras napoleônicas, quando as potências europeias concordaram que poderia criar um amortecedor entre as potências regionais.

Foi posteriormente codificada na Convenção de Haia de 1907 –a base da neutralidade suíça atual. A convenção exigia que os estados neutros se abstivessem de travar guerras e mantivessem uma equidistância entre as partes em conflito –eles poderiam vender armas, por exemplo, mas apenas se o fizessem para todos os lados de um conflito. Também obriga os países neutros a garantir que seus territórios não sejam usados por forças em guerra.

Isso levou ao que os suíços chamam de "neutralidade armada" –um compromisso não apenas com a neutralidade, mas com a manutenção da capacidade de protegê-la. É esta última que agora está ameaçada, argumentam os críticos.

Os defensores da indústria de armas suíça concordam que ela não tem grande impacto econômico para o país. Empregando 14 mil pessoas, representa menos de 1% do Produto Interno Bruto. Mas eles dizem que é fundamental para a neutralidade armada.

"A neutralidade armada precisa de soldados, armas, equipamentos –e uma indústria de armas. Nossa neutralidade tem que ser armada, senão é inútil", disse Werner Salzmann, membro do conservador Partido do Povo Suíço.

A indústria de defesa suíça depende das exportações, disse ele, e não poderia sobreviver sem elas.

Um papel crucial que a Suíça desempenha é para a Alemanha, um dos maiores apoiadores militares da Ucrânia. A empresa suíça Oerlikon-Bührle é efetivamente a única produtora de munição para o Gepard, canhão antiaéreo automotor do qual Berlim enviou dezenas para a Ucrânia. Os suíços até agora bloquearam os esforços alemães para comprar munição nova.

Os europeus e os principais players da indústria de defesa estão cada vez mais cautelosos em fabricar armas ou peças críticas na Suíça. A Rheinmetall, fabricante de armas alemã que é dona da empresa suíça, planeja abrir uma fábrica para fazer essas munições na Alemanha.

"Nos próximos dois a três anos, ainda estaremos produzindo por causa de contratos antigos que temos de cumprir", disse Matthias Zoller, porta-voz da indústria de armas da Swissmem, um grupo comercial. "Mas não temos pedidos chegando. O mercado de exportação simplesmente estará encerrado."

No início deste ano, os democratas livres pró-empresas da Suíça criaram uma brecha legal que a maioria dos legisladores pareceu aceitar: eles permitiriam que países que compartilhem os valores democráticos da Suíça reexportassem armamentos fabricados no país.

Mas na semana passada o Partido do Povo Suíço, o maior no Parlamento, rejeitou o projeto de lei, vendo-o como uma medida aberta demais para a Ucrânia –e, portanto, uma violação da neutralidade.

Desde então, os legisladores suíços reuniram seis contrapropostas. Mas nenhuma delas permite que as armas suíças cheguem à Ucrânia dentro de um ano.

Nas cidades suíças, muitos prédios exibem a bandeira azul e amarela da Ucrânia. A simpatia é evidente. Mesmo a maioria dos legisladores contra regras de exportação mais brandas chama abertamente a Rússia de Estado agressor. No entanto, isso não atenuou sua posição de neutralidade.

Em vez disso, alguns políticos conservadores estão reunindo assinaturas para promover um referendo sobre a inclusão de uma interpretação ainda mais rígida da neutralidade na Constituição suíça.

"Existem apenas duas opções –é isso", disse Walter Wobmann, legislador conservador que promove a iniciativa. "Você pode estar meio grávida? Você só pode estar grávida, ou não. Ou somos neutros e seguimos com isso até o fim, ou entramos numa aliança", como a Otan. "Qual será? A Suíça tem que decidir."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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