Relatório aponta abusos da polícia nos EUA, e ninguém se surpreende

Investigação em Louisville foi desencadeada por morte de Breonna Taylor, mulher negra baleada em abordagem violenta

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The New York Times

Quando o Departamento de Justiça americano anunciou esta semana que sua investigação sobre o Departamento Metropolitano de Polícia de Louisville trouxe à tona um padrão de comportamento abusivo e discriminatório, o secretário da Justiça Merrick Garland caracterizou a conclusão como "desoladora". O prefeito da cidade, Craig Greenberg, prometeu mudanças e qualificou de "uma traição" as táticas policiais descritas no relatório.

Melvin Boyd, que vive em Louisville praticamente a vida toda, concordou. Disse que as descobertas da investigação conduzida por quase dois anos são dolorosas e causam muita raiva. Mas não são surpresa.

"Não precisávamos do relatório", disse Boyd, ativista de 34 anos. Ele se referia a pessoas negras como ele, que compõem cerca de um quarto da população da cidade. "Já estávamos vivendo isso."

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Polícia se prepara para enfrentar manifestantes nas ruas de Louisville um dia depois de júri indiciar ex-policial pela morte de Breonna Taylor - Chang W. Lee - 25.set.2020/The New York Times

A investigação foi desencadeada pela morte em março de 2020 de Breonna Taylor, mulher negra de 26 anos que morreu baleada por policiais de Louisville durante uma operação malsucedida em seu apartamento, um caso que desencadeou meses de protestos. As conclusões captam uma litania de ações policiais –abordagens ilícitas, uso de força excessiva e de xingamentos raciais— que contribuíram para um ambiente volátil em Louisville, quando a confiança na polícia se enfraqueceu e o ressentimento ferveu.

Mergulhando na história perturbadora do departamento de polícia, a investigação obrigou a cidade a mais uma vez encarar suas dificuldades eternas com policiamento, racismo e responsabilização. A conclusão do inquérito –bem como a perspectiva iminente de um decreto federal de consentimento— impuseram uma discussão renovada sobre o que será necessário para resolver de uma vez por todas os problemas profundos e aparentemente refratários do departamento de polícia formado por mil integrantes, em sua maioria brancos.

O prefeito Greenberg, democrata que assumiu seu cargo em janeiro, disse em entrevista na última quinta-feira (9), falando das queixas registradas contra a polícia: "O Departamento de Justiça está dizendo essencialmente: ‘Sim, nós os ouvimos, e em muitos casos vocês tinham razão’. É importante e necessário lidarmos com a realidade do que aconteceu no passado para que possamos seguir adiante."

Os investigadores descobriram muitos casos de policiais subjugando moradores da cidade com compressões sobre o pescoço, estrangulamentos e até ataques de cães, usando força excessiva e crescente. Houve abordagens e revistas ilegais baseadas em mandados inválidos. Policiais escarneceram e maltrataram pessoas doentes mentais e usaram xingamentos racistas, chamando pessoas negras, entre outros termos, de "macacos", "animais" e "garoto".

"Isso me doeu até a alma", disse Jacquelyn Gwinn-Villaroel, desde janeiro a chefe interina de polícia da cidade, aludindo às conclusões do inquérito.

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Para o ativista Melvin Boyd Jr, relatório foi doloroso, mas não surpreendente - Xavier Burrell - 9.mar.2023/The New York Times

Algumas pessoas encaram a investigação federal como razão para otimismo, dizendo que ela pode levar a mais responsabilização e, desse modo, a uma força policial mais bem equipada para servir à comunidade negra.

A deputada Beverly Chester-Burton, que representa um distrito da cidade de maioria negra, descreveu o relatório como "algo que vai mudar tudo".

"Acho que as pessoas agora estão totalmente conscientes", disse ela. "As pessoas estão fartas de simplesmente aceitar as coisas como sempre têm sido. Este relatório diz muitíssimo sobre quais serão as expectativas para o futuro."

Mas também se vê um sentimento generalizado de exasperação na cidade de 630 mil habitantes.

"Como corrigir tudo isso?", indagou Barbara Boyd, no passado presidente da entidade ativista Aliança do Kentucky Contra a Opressão Racista e Política. "O mal já foi feito."

Antonio Brown, que disse que a morte de Breonna Taylor o levou a tornar-se ativista político na comunidade negra da cidade, ironizou a ideia de que o policiamento em Louisville vai melhorar após o relatório. Ele destacou que apenas na semana passada o prefeito destinou US$ 15,6 milhões para equipar uma nova sede do Departamento de Polícia e centro de bem-estar dos policiais, com equipamentos de ginástica e terapeutas de saúde mental, ao mesmo tempo em que a prefeitura investiga um incidente em dois adolescentes negros foram baleados por policiais, algo descrito como acidental.

"Não tenho fé nenhuma neste sistema", disse Brown. "Se queremos que alguma coisa seja feita, temos que fazê-la nós mesmos. Minha sugestão é que nós nos candidatemos a cargos políticos e entremos para a polícia."

A River City Fraternal Order of Police, o sindicato que representa os policiais de Louisville, criticou o relatório, que descreveu como uma "avaliação injusta" que não leva em conta o trabalho de qualidade realizado por muitos policiais.

Nos últimos anos o Departamento de Polícia tem tido dificuldade em conservar seus agentes e recrutar novos, deixando 300 postos em aberto e levando a uma queda no moral dos policiais ainda na ativa. Gwinn-Villaroel, que se tornou vice-chefe em 2021, é a quinta pessoa a comandar o departamento desde a morte de Breonna Taylor.

"Há muito mais trabalho por fazer", disse Gwinn-Villaroel, que passou a maior parte de sua carreira no Departamento de Polícia de Atlanta. Ela falou da necessidade de fortalecer os laços com a comunidade, mas também de elevar o moral dos policiais. Citou a contratação de um psicólogo e um capelão pelo departamento como parte do trabalho que está sendo feito.

"A grande maioria dos policiais está fazendo o que é certo", ela disse. "Como líder, como chefe, preciso continuamente reconhecer e apoiar isso."

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Memorial por Breonna Taylor é montado em Louisville - Xavier Burrell - 2.out.2020/The New York Times

O relatório do Departamento de Justiça exortou a força policial a reformar seu treinamento e melhorar a fiscalização civil. Reconheceu que algumas medidas já foram adotadas, como acabar com os mandados judiciais ditos "no-knock" [que permitem aos policiais invadir residências sem bater à porta antes] como o que os policiais usaram para invadir o apartamento de Taylor em 2020, e a criação de um programa piloto para usar especialistas em saúde comportamental, em vez de policiais, para atender a alguns chamados em casos de crises de saúde mental (Greenberg disse que a expansão desse programa é uma prioridade).

Para David K. Karem, ex-senador estadual e líder cívico há anos, a modificação da cultura do departamento de polícia será um processo que levará anos e que, na prática, terá que reconstruir a força policial do zero com cada recruta novo, mais ou menos como transformar uma escola em dificuldades começaria com a entrada de uma nova turma de alunos da primeira série.

O maior desafio, para ele, consiste em simultaneamente mudar o enfoque de muitos policiais na ativa hoje, cuja carreira toda foi baseada em fazer as coisas à moda antiga.

"Isso vai levar um tempo enorme", ele disse. "Acho que há algumas pessoas na organização que estão culturalmente desligadas dos tempos em que vivemos."

Markus Winkler, presidente do Conselho Metropolitano de Louisville, disse que a entidade vai trabalhar para colocar em prática as mudanças recomendadas pelo decreto de consentimento –algumas das quais já foram adotadas, ele disse— e assegurar a existência dos recursos necessários para isso. Mas, acrescentou, os problemas do Departamento de Polícia de Louisville não são diferentes dos problemas vistos em Minneapolis, Memphis, Tennessee, e outras cidades grandes, e eliminá-los será um esforço tanto da sociedade quanto administrativo.

Tradução de Clara Allain

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