Descrição de chapéu The New York Times

Explosão de mortes de sem-teto expõe 'roleta-russa' da vida nas ruas da Califórnia

Grandes cidades dos EUA têm mais desabrigados, que morrem de forma prematura e evitável em número recorde

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San Diego (EUA) | The New York Times

Laine Goettsch arrumou sua maleta de emergência médica e dirigiu até o centro de San Diego para procurar seu paciente favorito, temendo o que poderia encontrar. Às vezes ela via Abdul Curry limpando as calçadas perto de sua barraca e dançando uma playlist de músicas de Ed Sheeran.

Em outras vezes, ela o encontrava hipotérmico, em um saco de dormir molhado, e cercado de pessoas fumando fentanil. Também havia dias em que não conseguia encontrá-lo e continuava procurando-o enquanto se preparava para receber uma ligação do hospital, da polícia ou do médico legista.

Goettsch, 29, passou o último ano trabalhando como médica em becos e estacionamentos no centro da cidade, tentando ajudar Abdul e dezenas de outras pessoas a permanecerem vivas durante o período mais perigoso da história moderna para os sem-teto nos Estados Unidos. Há mais pessoas desabrigadas nas maiores cidades do país, e um número recorde delas estava morrendo de forma prematura e evitável.

O número de vítimas sem-teto em San Diego, na Califórnia, aumentou quase dez vezes na última década, de 64 mortes em 2014 para quase 600 investigadas pelo departamento de medicina legal em 2022.

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Adbul Curry cochila em um ônibus público a caminho de uma igreja - Erin Schaff - 10.abr.23/The New York Times

Naquele dia, a médica atravessou uma ponte e viu Abdul caído na entrada de um estacionamento. Ele tinha uma ferida aberta na testa e as roupas encharcadas de água.

Abdul contava com os encontros semanais —sua única estabilidade numa época em que morar na rua em San Diego havia se tornado o que ele chamava de "um jogo diário de roleta russa".

Sua antiga companheira, Phasia McKee, tinha morrido em novembro de uma suposta overdose de fentanil, aos 46 anos. Três de seus amigos foram atropelados e mortos em suas barracas por um motorista embriagado que desviou para a calçada. No último ano, ele reviveu seis pessoas com overdose de fentanil, administrando reanimação cardiopulmonar (RCP) e spray nasal naloxona. Ele também já teve cinco overdoses, incluindo uma poucos dias antes, quando desmaiou na calçada, abriu a testa, sofreu um pequeno derrame e passou 36 horas no pronto-atendimento antes de ser liberado para voltar à rua.

Laine se ajoelhou ao lado dele para verificar seus sinais vitais. Ele estava com um pouco de febre, e sua pressão arterial estava perigosamente alta. Ela lhe deu uma aspirina e pegou o computador para acrescentar os dados a seu prontuário médico, que contava a história de uma vida ao léu: fadiga crônica, desnutrição, alcoolismo, visão turva, transtorno esquizoafetivo, depressão, ansiedade, paranoia.

Nas últimas semanas, a crescente preocupação de Laine com a saúde de Abdul se estendeu para além de seus dias de trabalho com o grupo beneficente Healthcare in Action (saúde em ação).

A idade média de morte de pessoas sem-teto em San Diego é inferior a 50 anos, e Abdul estava prestes a completar 64. Ele passou os últimos anos pulando entre apartamentos temporários e sendo forçado pela polícia a mudar seu saco de dormir de uma calçada para outra, até que a coisa mais próxima que ele achou de um abrigo permanente foi um estacionamento num morro com vista para o centro da cidade.

Ele conseguiu passar 20 meses fazendo-se útil e encantando os seguranças cujo trabalho era manter a garagem livre. Ele lavava carros e limpava o lixo das ruas próximas com uma vassoura e uma pá.

À noite, os escritórios próximos esvaziavam, o estacionamento ficava escuro, e as únicas pessoas que sobravam no quarteirão eram as que não tinham para onde ir. Meia dúzia de pessoas que viviam na rua arrastava seus pertences para se juntar a Abdul na garagem, onde poderiam ficar secos sob a marquise.

Ele tinha se mudado para a Califórnia duas décadas antes, para cuidar de sua mãe e de seu irmão que estavam morrendo de câncer, e alimentou seu sofrimento com vodca e heroína até ser preso por delito com drogas e perder seu negócio de reformas. Então começou uma nova vida na rua, a começar pela mudança de nome —de Howard para Abdul. Ele testava a segurança das drogas de seus amigos com tiras de teste de fentanil, colocava curativos em suas picadas de aranha e ficava acordado a maior parte da noite para vigiar quem se movia entre os abrigos próximos e a garagem.

Havia Michelle Benitez, 56, que tinha um ex-namorado abusivo e carregava um taco de beisebol para se proteger; Pamela Thomas, 51, ex-viciada em fentanil que recolhia pedaços de papel-alumínio queimado na calçada e os dobrava em forma de sapos, borboletas e barcos que ela usava como joias; e Henrietta Maes, 38, que muitas vezes carregava uma lata de gás portátil e acendia algo para fumar num cachimbo.

Certa manhã, Laine chegou à garagem para dar boas notícias. Ela havia conversado com um colega de sua equipe de voluntários e descobriu que, como Abdul havia servido na Força Aérea após o colegial, tinha direito a um apartamento subsidiado pelo Departamento de Assuntos de Veteranos.

"Ainda não é garantido", explicou ela, enquanto escrevia uma lista de passos para a potencial mudança de Abdul. Ele precisava trocar seu cartão de Previdência Social perdido, mas já havia superado o limite vitalício de dez cartões, então tinha de escrever uma carta e solicitar uma isenção especial. Em seguida, teria de substituir sua identidade estadual perdida, resolver um mandado de prisão por um delito menor de drogas, abrir uma conta, preencher meia dúzia de formulários e entrevistar possíveis proprietários.

Mas, antes de fazer qualquer uma dessas coisas, precisava de um telefone que funcionasse. "Considere feito", disse ele. "Vai acontecer hoje. Garantido."

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Laine Goettsch abraça Abdul Curry na van mantida pela ONG onde atua - Erin Schaff - 4.abr.23/The New York Times

Ele conhecia um sujeito chamado Mike, que tinha um quiosque de telefonia perto da baía e certa vez disse a Abdul que, se ele levasse seu iPhone antigo em condições de funcionamento, poderia substituí-lo por um com serviço de celular por apenas US$ 30 (R$ 147).

Abdul apertou o botão para ligar o telefone, mas a bateria estava descarregada. Experimentou os oito carregadores que tinha nas malas até encontrar um que coubesse, e então foi a uma loja de conveniência para perguntar se podia usar a tomada. O gerente disse que primeiro precisava comprar alguma coisa, então Abdul voltou para a garagem e passou 45 minutos tentando pedir dinheiro emprestado a amigos que não tinham, até que finalmente alguém concordou em pagar US$ 10 de aluguel por seu rádio portátil.

Ele então correu de volta à loja, comprou um maço de cigarros, ligou o telefone e esperou quase uma hora até que carregasse. A tela do visor mostrava que passava de 12h, e Abdul ainda precisava arranjar US$ 30 e encontrar alguém para guardar seus pertences na garagem enquanto pegava o ônibus até o quiosque.

Ele avistou Henrietta na rua, de blush e cílios postiços. "Você pode me fazer um favor?", perguntou. "Ficar de olho nas minhas coisas para que não roubem?" "Claro", disse Henrietta. "Espera dez minutos. Já volto."

Abdul esperou dez minutos, 30 minutos, quase uma hora. "Isso está começando a me dar nos nervos", disse. Ele fumou um pouco de maconha. Bebeu meio litro de vodca. Lembrou que Laine queria que tomasse seus medicamentos para ansiedade quando sentisse que estava ficando chateado, então desempacotou todos os seus pertences para procurar a caixa de remédios, não encontrou nada e reembalou tudo novamente. Eram quase 15h, e o quiosque fecharia em uma hora.

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Abdul usa uma navalha para cortar o cabelo de um amigo - Erin Schaff - 6.abr.23/The New York Times

"Ei, você pode olhar minhas coisas um pouquinho?", Abdul perguntou a outro amigo, a quem havia ressuscitado após uma overdose meses antes. "Desculpe", disse o amigo. "Estou passando por um momento difícil." "Quem diabos não está?", disse Abdul. Outra tragada. Outro gole. Ele não comia havia 12 horas nem dormia havia dois dias e sentiu que o corpo ficava dormente, e os pensamentos, nublados.

"Passei o dia todo tentando sair desta calçada e não consegui andar um metro", disse ele. "Este lugar parece areia movediça." Alguns dias depois, Laine chegou para seu próximo encontro com Abdul e encontrou a garagem vazia. Seus pertences estavam empilhados num canto, mas ele não estava à vista. Ela viu Michelle parada na esquina, de camisola e fumando um cigarro. "Você viu o Abdul?", perguntou.

"Não, desde ontem à noite", respondeu Michelle. Ela se juntou à busca, assobiando e gritando o nome dele pelo centro da cidade. Continuaram procurando até que Laine ficou atrasada para sua próxima tarefa. Ela deu seu número de telefone para Michelle e apertou sua mão. "Me ligue quando o achar", disse.

Nos últimos dias, Laine tinha encontrado um proprietário que conhecia Abdul e estava disposto a ignorar parte da papelada e entregar as chaves de um apartamento subsidiado, mas já se perguntava quanto tempo isso iria durar. Abdul tinha transformado seu último abrigo temporário num refúgio para os amigos sem-teto, e os recicláveis que coletavam atraíram ratos, até que ele voltou para a rua novamente.

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Abdul varre lixo no quarteirão onde costuma ficar, em San Diego - Erin Schaff - 6.abr.23/The New York Times

Laine estacionou a van e mandou uma mensagem para Michelle. "Você já o encontrou?", perguntou. Ela estava entrando no abrigo do Exército de Salvação para ver outro paciente quando seu telefone tocou.

"Estou com ele", disse Michelle. "Não está bem."

Abdul estava sentado com um cobertor sobre a cabeça no saguão de uma clínica médica familiar, resmungando consigo mesmo, com ânsia de vômito e às vezes gemendo de dor. Laine se ajoelhou ao lado dele para medir sua pressão arterial, e a máquina mostrou 168 por 153. Ela nunca tinha visto pressão alta tão severa em nenhum de seus pacientes, então reiniciou a máquina e verificou novamente: 165 por 152.

Ela passou o braço sobre seu ombro e, após alguns segundos, ele abriu os olhos e começou a listar seus sintomas: náusea, dor de cabeça, visão turva no olho direito, paralisia parcial nas mãos e dormência no lado direito do corpo. Laine chamou um médico de sua equipe para saber se ele precisava ir ao hospital, mas primeiro decidiram lhe aplicar alguns remédios. Laine entregou a ele quatro aspirinas e outros sete comprimidos. Ele mastigou um de cada vez e, depois de um tempo, sua pressão começou a baixar.

"Há algo mais que precisamos fazer enquanto estou aqui", disse ela, pegando um formulário médico no qual vinha pensando desde que Abdul desapareceu. Era uma diretriz antecipada para seu tratamento em caso de emergência. "Se algo acontecesse, você iria querer suporte de vida?", perguntou. "RCP [reanimação cardiopulmonar]?" "Já fiz em pessoas muitas vezes", disse ele. "Então sim, eu quero."

"E ventilação mecânica se você não conseguir respirar sozinho?" "Hmm", disse ele. "Se minha mente ainda estiver lá, ok. Mas me dê algumas drogas." "Tubo de alimentação?" "Essa é difícil", disse ele. "Não sei."

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Com a perna enganchada em seu carrinho de pertences, Abdul dorme na calçada - Erin Schaff - 5.abr.23/The New York Times

Ela esperou um minuto enquanto a cabeça dele caía em direção ao peito, então ela colocou a mão no joelho dele. "Você está pensando ou vai dormir?" "Estou sonhando", disse ele. "Com quê?"

"Algo bom... Algo diferente de morrer", disse. Laine arrumou sua maleta e guardou a diretriz antecipada para outra hora. Ela esperava que em breve ele tivesse um lugar para dormir numa casa, e talvez durante algum tempo nenhum dos dois precisasse se preocupar tanto com a garagem, o frio, a chuva, os episódios psicóticos ou as overdoses. "Descanse um pouco, vamos terminar isso mais tarde", ela sussurrou.

Então se levantou para sair, mas Abdul pegou seu braço. "Já pensei", disse ele. "Se houver alguma maneira de eu ainda ser salvo, por favor, me salve."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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