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Livro explora vezes em que líderes, igrejas e governos escorregaram na ignorância

'Ignorância: Uma História Global', de Peter Burke, compila exemplos que vão da aversão a Galileu à Guerra do Vietnã

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São Paulo

Vejamos como um tema banal, a ignorância, pode ser tratado com seriedade acadêmica pela historiografia.

Em 1926, o estado americano do Tennessee aprovou uma lei proibindo que as escolas públicas se afastassem da versão bíblica e ensinassem o evolucionismo de Charles Darwin. Faz sentido, pois pesquisa do Instituto Gallup bem mais recente, de 2017, demonstrou que dois terços dos americanos acreditavam que Deus criou os humanos num único momento, como na história de Adão e Eva.

Outro exemplo: David Lloyd-George foi primeiro-ministro britânico entre 1916 e 1922. Ele certa vez disse a seu colega francês que não sabia em que canto moravam os eslovacos, que são em verdade vizinhos dos tchecos na Europa central.

Capa de 'Ignorância: Uma História Global', de Peter Burke, publicado pela Editora Vestígio
Capa de 'Ignorância: Uma História Global', de Peter Burke, publicado pela Editora Vestígio - Divulgação

Episódios semelhantes aparecem num livro saboroso, chamado "Ignorância: Uma História Global", publicado pela Editora Vestígio. O autor é o historiador inglês Peter Burke, conhecido por uma imensa variedade de assuntos culturais que pesquisou.

Burke não folcloriza a ignorância. Ele constrói um eixo de interpretação histórica em que os seres humanos, as igrejas, os exércitos ou os governos escorregam em suas decisões por não disporem ou não aceitarem os conhecimentos necessários.

É assim que o livro cita de maneira breve e quase pudica a ignorância mais caricatural. Como a rejeição descomunal despertada pelo astrônomo Galileu Galilei (1564-1642), para quem era o Sol, não a Terra, que estava no centro de nosso sistema planetário.

A Igreja –e Burke não compra briga com ela– achou inadmissível uma teoria que negava o fato de o homem ser o centro da criação, o que deveria fazer da Terra um miolo, e todos os demais planetas apenas seus satélites.

Mas os teólogos também são sensatos, como Tomás de Aquino, que se refere em alguns casos à "ignorância invencível". Seria o exemplo do filósofo grego Platão, que desconhecia o cristianismo, já que Cristo nasceria apenas séculos depois dele.

Um dos temas sobre os quais mais se formularam besteiras foi a idade do planeta em que vivemos. Seriam 6.000 anos, segundo um dos consensos correntes no século 17. Ou então, como diria curiosamente o arcebispo anglicano James Usher (1581-1656), o mundo começou a existir em 23 de outubro de 4004 a.C. Um século depois do arcebispo, o conde de Buffon diria na França que a Terra tinha 75 mil anos. Estamos ainda bem longe das atuais estimativas que mencionam 4,5 bilhões de anos.

A ignorância, relata Burke, preocupa, e prova disso são as alegorias que ela provocou para se representar. No século 15, por exemplo, o pintor Andrea Mantegna a via como uma mulher nua, mas sem olhos. Na mesma época, o dicionário de imagens de Cesare Ripa retratava a ignorância como uma mulher com os olhos vendados, andando num campo de espinhos. No século 18 chegamos mais perto da imagem trivial que temos hoje. Sebastiano Ricci a pintou explicitamente como um homem com as orelhas de burro.

A geografia é um campo do conhecimento em que a ignorância se manifesta com maior despudor. E não necessariamente em tempos ancestrais. O londrino Daily Mail publicou em 2012 pesquisa do instituto OnePoll revelando que metade dos britânicos afirmava acreditar que o Monte Everest se situava na Inglaterra.

Nos EUA, a National Geographic Society combate o que chama de "analfabetismo geográfico", exemplificado por pesquisa de 2006 em que dois terços dos americanos de 18 a 24 anos não sabiam onde fica o Iraque.

Mergulhando no passado, gregos e romanos da Antiguidade acreditavam que na África e na Ásia existiam povos não humanos, de raças monstruosas, como os cinocéfalos (homens com cabeça de cão), os ciápodes (que tinham um só pé e eram mesmo assim de tamanho descomunal) e os biêmios, indivíduos cujas cabeças variavam de tamanho.

Geograficamente a ignorância se refere também ao desconhecido, e Burke cita, entre dezenas de exemplos, frei Vicente de Salvador, que em 1627 lamentava que os portugueses permanecessem no litoral, como caranguejos, e desconhecessem o que a colônia escondia em seu interior.

Bem mais para o que nos é contemporâneo, há a ignorância sobre o Vietnã como um dos motivos pelos quais os EUA perderam aquela guerra. Burke cita estudo do sociólogo James Gibson que se refere eufemicamente às "ausências de conhecimento" do Exército e dos políticos americanos.

O secretário de Defesa americano Robert McNamara –e sou eu, não Burke quem diz isso— se referia ao "pouco apego" dos guerrilheiros à vida, quando, em verdade, o que ocorria era uma corajosa investida militar dos vietnamitas contra os invasores externos.

Ignorância: Uma História Global

  • Quando Lançamento em 26/5
  • Preço R$ 74,90 (352 págs.)
  • Autoria Peter Burke
  • Editora Vestígio
  • Tradução Rodrigo Seabra
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