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Livro reconta história das Cruzadas em 'outro lado' pouco honroso para cristãos

'As Cruzadas Vistas Pelos Árabes' estimula historiadores a mergulhar em guerra que nada tinha de peregrinação angelical

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São Paulo

Entremos no túnel do tempo. Em 1099, parte dos 35 mil cristãos que atravessaram um bom pedaço da Europa e da Ásia Menor se apoderou de Jerusalém, em desfecho da Primeira Cruzada.

Passaram-se 192 anos até que, em 1291, o sultão Khalil derrotou os cristãos na cidade de Acre, na Galileia, hoje em dia situada em Israel. O fato é que a historiografia sobre as Cruzadas deu um salto qualitativo em 1983, quando o historiador franco-libanês Amin Maalouf publicou em Paris o livro "As Cruzadas Vistas Pelos Árabes", agora novamente publicado no Brasil pelo Grupo Autêntica.

Maalouf despertou a curiosidade de historiadores árabes, e ao menos meia dúzia deles publicou nos últimos anos pesquisas sobre "o outro lado" da história dessa longa aventura medieval.

Castelo de al-Marqab, que serviu de fortaleza para muçulmanos durante as Cruzadas, na Síria - Louai Beshara - 25.jul.22/AFP

Esse "outro lado" é pouco honroso para os cristãos. Em vez de peregrinos angelicalmente empenhados em libertar o túmulo de Cristo do poder muçulmano, há uma guerra que vitimou não só curdos, turcos, berberes e árabes, mas também judeus e cristãos que não deviam obediência ao papa do Ocidente.

O tópico mais doloroso para a imagem dos cruzados está na antropofagia praticada em Maarate, conquistada depois que eles tomaram as cidades de Niceia e Antioquia. Maalouf apela excepcionalmente ao testemunho de cronistas cristãos para abordar a delicada prática. Trata-se em primeiro lugar de Albert Aquisgran, para quem, em razão da fome, "os nossos" foram obrigados a comer a carne dos sarracenos.

Outro cristão mencionado, Raoul de Caen, cita cadáveres de árabes adultos cozidos em imensas marmitas e de crianças sendo assadas no espeto. Alguns historiadores ocidentais dizem haver no relato um proposital exagero, já que a narrativa de antropofagia era usada pelos cristãos para aterrorizar os espiões que dirigentes árabes colocavam dentro dos muros das cidades conquistadas.

Dizem também que a antropofagia chegou a ser praticada, mas com árabes já mortos. Não os mataram para em seguida comê-los. Mais uma vez, o consumo de carne humana, ao ser colocada em relevo pelo historiador franco-libanês, machucou a reputação dos cristãos. Aliás, é curiosa a maneira fria e quase objetiva com que os cronistas árabes, contemporâneos às Cruzadas, referem-se aos cristãos. Eles são tratados como francos ou invasores, jamais como ímpios ou qualquer adjetivo que calunie a crença religiosa. É o caso dos cronistas Ibn al-Qalanissi e Ibn al-Athir, entre os citados por Masalouf.

Eles narram um confronto lento, em que a tecnologia militar não tinha ainda a pólvora dos canhões, e as cidades muradas eram ameaçadas por guerreiros que construíam torres de madeira para praticar a invasão. Os arqueiros reagiam a partir da muralha com flechas incandescentes sobre as torres inimigas. Estas, para não queimar, eram revestidas de peles de animais embebidas em vinagre.

Bem mais selvagem foi a conquista de Jerusalém, onde os judeus se uniram aos árabes para defender a cidade. Com os cristãos já dentro dos muros, eles cercaram a judiaria e derrubaram sua proteção.

"A comunidade inteira, reproduzindo um gesto ancestral, se reuniu na sinagoga principal para rezar. Os francos [cristãos] bloquearam todas as saídas e, empilhando toras de madeira, atearam fogo ao local. Os que tentavam sair eram mortos nas ruelas vizinhas. Os demais, queimados vivos."

Se os judeus foram vítimas secundárias, eram obviamente os árabes os grandes inimigos dos cruzados, até que um vizir de desempenho político e militar excepcional modifica o cenário. Foi Saladino (1138-1193) que unificou o Egito à Síria e reconquistou Jerusalém para os muçulmanos em 1187, na batalha de Hatim. Detalhe: Saladino liberou a passagem de peregrinos que quisessem visitar o Santo Sepulcro, e com isso neutralizou o motivo inicial para o surgimento das cruzadas.

Mas em momento algum prevaleceu o conformismo para um convívio aceitável entre cristãos e muçulmanos. A regra foi a do confronto e muito sangue. Ainda no século 12, uma década após Jerusalém, os cristãos conquistaram Trípoli e Beirute. Apoderaram-se também de Tiro, mas são esmagados em Sarmada e não conseguem conquistar Damasco, cuja segunda tentativa de controle termina com a derrota dos cristãos chefiados pelo imperador germânico Conrado e pelo rei francês Luís 7º, em 1148.

Vejam que as Cruzadas passaram a envolver monarcas após um início em que mobilizavam só a grande nobreza, como Raymond de Saint-Gilles, o conde de Toulouse, ou Tancredo de Hauteville, da família dos príncipes normandos. Pois outras cabeças coroadas se envolveram, como o rei inglês Ricardo Coração de Leão e outro rei francês, Luís 9º.

As Cruzadas Vistas Pelos Árabes

  • Preço R$ 78,90; 304 págs.
  • Autor Amin Maalouf
  • Editora Grupo Autêntica
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