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Livro amarra milenar história da China sem cair no essencialismo cultural

Obra do historiador britânico Michael Wood contorna inevitável superficialidade com bom filtro e análises de tendências

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São Carlos (SP)

Parece haver algo de inerentemente intimidador na trajetória histórica da China, ao menos para quem cresceu tendo a impressão de que a história do Ocidente é a única "história universal".

Para quem não tem ideia de por onde começar a entender as origens e o desenvolvimento do país, um livro do historiador e documentarista britânico Michael Wood que chegou recentemente ao Brasil pode funcionar como um precioso fio da meada.

Vendedoras de comida aguardam clientes em rua da cidade de Dali, na província chinesa de Yunnan
Vendedoras de comida aguardam clientes em rua da cidade de Dali, na província chinesa de Yunnan - Noel Celis - 14.jan.23/AFP

À primeira vista, "História da China: O Retrato de uma Civilização e seu Povo" parece uma daquelas obras complicadas que são, ao mesmo tempo, longas e curtas demais. As mais de 600 páginas do livro estão longe de funcionar como uma leitura casual, claro, mas também é possível argumentar que é pouca coisa para cobrir mais de 3.000 anos de história registrada. Alguma superficialidade se torna inevitável.

Wood contorna essas limitações com estratégias complementares. Primeiro, não cai na tentação de detalhar o que aconteceu no reinado de cada um dos imperadores que dominaram a China.

Em vez disso, escolhe algumas figuras emblemáticas de cada período –nem sempre monarcas, mas também filósofos, poetas e mercadores de ambos os sexos– para biografar, enquanto narra, com grandes pinceladas, o que moldou as dinastias imperiais e a China pós-monárquica do século 20.

Depois, o historiador tem o cuidado de amarrar essa trajetória complicada analisando as tendências que parecem se repetir em diversos momentos da história chinesa –a parte que corresponde ao "retrato de uma civilização" do subtítulo do livro.

O risco embutido nesse aspecto é descambar para o essencialismo cultural. Ou seja: dar a entender que existiria algo de imutável e completamente distinto do Ocidente na história chinesa. Em geral, Wood consegue escapar da armadilha, sem deixar de ressaltar o que há de específico na história dos povos que deram forma à China.

Nessa lista de especificidades, um elemento central é a continuidade com o passado remoto, apesar das tremendas mudanças trazidas pela modernidade e pelo fim da China imperial. Cerimônias e crenças que surgiram na Idade do Bronze ainda estão presentes no cotidiano de centenas de milhões de chineses.

Segundo as intrigantes analogias de Wood, é como se os gregos de hoje ainda oferecessem sacrifícios aos deuses do Olimpo e aos heróis da guerra de Troia enquanto usam smartphones e viajam de trem-bala. Ou como se como o Egito faraônico tivesse sobrevivido como nação independente até cem anos atrás.

Outro elemento enfatizado é a tendência à unificação e centralização política, que emergiu séculos antes do início da Era Cristã por meio da ideologia do Mandato do Céu –a ideia de que um único poder central terreno recebia dos poderes celestiais a legitimidade para governar todos os que vivem "sob o céu".

A China se fragmentou territorialmente diversas vezes desde que a ideologia do Mandato do Céu surgiu, mas as forças promotoras da reunificação sempre prevaleceram.

No pano de fundo desses processos, duas visões bastante distintas contribuíram para as idas e vindas da política e da cultura chinesa. Há o que Wood apelida de humanismo confucionista, um ideal formulado inicialmente pelo pensador Confúcio (nascido em 551 a.C.) e que tinha entre suas bases a máxima "não façais aos outros o que não quereis que vos façam". E, por outro lado, desenvolveu-se uma tradição de realismo político que enxergava a imposição da ordem como o bem supremo, mesmo que por meio de leis draconianas e do terror estatal.

Se essas ideias talvez remetam o leitor a estereótipos sobre a cultura chinesa, a narrativa de Wood demonstra claramente que a abertura da China ao mundo foi muito mais a regra do que a exceção.

As conexões diplomáticas e culturais do país com o resto da Ásia por meio da Rota da Seda transformaram o território chinês num centro essencial para a evolução do budismo, do islã e até do cristianismo nestoriano, uma corrente teológica que surgiu no Império Romano do fim da Antiguidade e floresceu por séculos do outro lado da Eurásia.

Outro elemento aparentemente constante da história chinesa é a tradição de mobilização popular, com revoltas camponesas que chacoalharam os diversos regimes ao longo dos milênios, mostra Wood.

Embora o país hoje abrigue um dos Estados mais politicamente centralizados de sua história, num processo auxiliado pela capacidade de vigilância virtual que a internet proporcionou, não se pode descartar que as transformações venham dessas bases, como em outros momentos do passado.

História da China: O Retrato de Uma Civilização e Seu Povo

  • Preço R$ 89,91 (ebook); 624 págs
  • Autor Michael Wood
  • Editora Crítica
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