Opositor na Turquia faz de comedimento trunfo para derrotar Erdogan em eleição

Desistência de 4º colocado em pesquisas de intenção de voto impulsiona Kemal Kilicdaroglu, 'o tranquilo', à Presidência

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Milão

Ele costuma fazer coraçãozinho com as mãos e ganhou, anos atrás, o apelido de Gandhi —não só por lembrar fisicamente o pacifista indiano de cabelo rente, óculos finos e bigode. Após duas décadas ofuscado por Recep Tayyip Erdogan, Kemal Kilicdaroglu tem a maior chance da oposição de derrotar o presidente turco graças ao que um dia foi considerado sua fraqueza, a personalidade comedida.

Nesta quinta (11), outro candidato da oposição, Muharrem İnce, que aparecia em quarto nas pesquisas, com 2% das intenções de voto, anunciou sua retirada da disputa. Embora não tenha apoiado formalmente Kilicdaroglu, a possível migração desses votos pode ampliar as chances da frente anti-Erdogan.

Kemal Kilicdaroglu, candidato à Presidência da Turquia, durante comício em Bursa - Murad Sezer - 11.mai.23/Reuters

Desde 2010 à frente do Partido Republicano Popular (CHP), de centro-esquerda, Kilicdaroglu, 74, representa a coalizão de seis legendas que enfrenta Erdogan, 69, no comando do país desde 2003, como premiê, e, desde 2014, presidente. O primeiro turno acontece no domingo (14) e, pela primeira vez, a oposição, à frente nas pesquisas por pequena margem (49% a 46%), pode tirar Erdogan do poder.

Escolhido em março para a função, Kilicdaroglu, há mais de 20 anos com mandatos no Parlamento –e famoso por uma marcha à la Gandhi em 2017–, não era o nome mais óbvio. O economista e funcionário público aposentado, escolhido em 1994 como o "burocrata do ano" por uma revista, era visto como menos competitivo que os prefeitos de Istambul e Ancara, ambos vitoriosos em 2019 contra aliados de Erdogan.

Depois de contornar o risco de racha na aliança, que inclui social-democratas laicos, nacionalistas, conservadores islâmicos e liberais, Kilicdaroglu saiu reforçado como mediador, algo que o difere do populismo polarizador de Erdogan e de seu partido, o AKP, de linha nacionalista conservadora.

"Sua personalidade discreta, menos agressiva e menos dominante, tornou-se um trunfo. Sua calma e seu estilo não antagonista têm mantido os líderes da oposição unidos", diz à Folha Salim Çevik, pesquisador especializado em Turquia do Instituto Alemão de Assuntos Internacionais e de Segurança (SWP).

A falta de carisma é um traço perene em sua carreira. "Ele não é um bom orador e falhou, como líder partidário, em melhorar a votação do CHP na última década", avalia Çevik. Mas no presidencialismo –que substituiu o parlamentarismo em 2017, em reformas promovidas por Erdogan–, a ação de um aglutinador aumenta as chances da oposição. "Nesse sentido, Kilicdaroglu é o candidato ideal", diz o pesquisador.

Há cinco anos, Erdogan venceu no primeiro turno com quase 53%, diante de adversários fragmentados. Dessa vez, as pesquisas indicam que a disputa deve ir para o segundo turno, já que nenhum nome deve superar os 50% dos votos –a votação final, caso seja necessária, está marcada para 28 de maio.

"Apesar de unida, a oposição apresentou seu candidato mais fraco. Um homem com origens na burocracia e sem grande carisma", diz Asli Aydintasbas, jornalista turca e pesquisadora do Brookings Institution e do Conselho Europeu de Relações Exteriores. "Mas ele tem se posicionado como a pessoa capaz de coordenar a coalizão anti-Erdogan e ser uma figura de transição para um retorno à democracia."

Segundo relatório do instituto sueco V-Dem, um dos principais núcleos de estudo sobre sistemas políticos, a Turquia é hoje uma autocracia eleitoral —isto é, um país que possui eleições multipartidárias, mas está aquém em outros pilares democráticos devido a irregularidades em garantias institucionais.

A mensagem de que será um líder de transição é um dos fatores que seguram os seis partidos no seu entorno. Uma das promessas de campanha é promover a volta ao parlamentarismo, o que exigirá a falta de ambição política –outra característica de Kilicdaroglu– daquele que for eleito presidente, alguém disposto a abrir mão dos poderes quase ilimitados arquitetados por Erdogan nos últimos anos.

Nascido na província de Tunceli, Kilicdaroglu é filho de um funcionário público. Após se formar em economia em Ancara, fez carreira no Ministério de Finanças e no Instituto de Seguro Social, no qual chegou a ser diretor-geral e se aposentou em 1999. Foi só então que ingressou na política. Em 2002, na eleição em que o AKP de Erdogan conquistou a maioria dos votos, ficou com uma cadeira no Parlamento.

Casado e pai de três filhos, tem origem na minoria religiosa alevi, baseada em tradições muçulmanas xiitas, sufis e anatólicas, diante da maioria sunita do país. Com a justificativa de não acirrar conflitos, evita comentários sobre esse pano de fundo e o apoio que recebe de curdos, marginalizados por Erdogan.

As experiências que precedem a vida partidária têm servido para proclamar um discurso anticorrupção e de suposta habilidade para recuperar a economia, afundada numa crise inflacionária que atingiu 85% em 2022 –em março, era de 50%. A alta do custo de vida é a principal razão por trás da perda de popularidade de Erdogan, além de causas e efeitos do terremoto que matou mais de 50 mil na Turquia em fevereiro.

"Não há dúvida de que a maioria quer mudança e procura uma alternativa, em especial devido à situação econômica. Mas não é certo que irão de Kilicdaroglu. Será uma disputa muito apertada", diz Aydintasbas.

Segundo Çevik, do instituto alemão, a resistência de parte dos eleitores em apoiar a oposição passa pela força política de Erdogan, consolidada por anos de ênfase em questões identitárias e polarização, como o confronto ao secularismo representado pelo partido de Kilicdaroglu. "Há também dúvidas sobre a capacidade da oposição de governar. É uma aliança muito eclética e é difícil mantê-la unida."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.