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Rival de Erdogan explora imagem de 'gente como a gente' em eleição na Turquia

Oposicionista Kemal Kilicdaroglu quer atrair eleitores fartos do discurso intransigente do atual presidente

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Ben Hubbard Gulsin Harman
Istambul | The New York Times

O principal candidato oposicionista que vai tentar derrubar o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, nas eleições de maio prometeu desfazer o legado do líder de longa data do país e se concentrar em fortalecer a democracia, aliviar a crise do custo de vida e combater a corrupção.

O candidato é Kemal Kilicdaroglu, que quer atrair eleitores que podem estar fartos do discurso bombástico e da atitude intransigente do presidente. Em sua campanha, ele se apresenta não apenas como o adversário de Erdogan, mas como seu oposto absoluto: um homem calmo e comum que diz que pretende se afastar da política depois de apenas um mandato de cinco anos na Presidência.

Kemal Kilicdaroglu discursa em comício na cidade de Canakkale, na Turquia
Kemal Kilicdaroglu discursa em comício na cidade de Canakkale, na Turquia - Ozan Kose - 11.abr.23/AFP

Erdogan, 69, destaca-se em situações que evidenciam seu poder e o inserem entre outros líderes mundiais. Já Kilicdaroglu, 74, fala com os eleitores sentado na cozinha modesta de sua casa, com um copo de chá ao seu lado e panos de prato pendurados na porta do forno atrás dele.

"Nossa democracia, economia, sistema judiciário e liberdades estão fortemente ameaçados por Erdogan", disse o ex-funcionário público num vídeo de campanha recente filmado em sua cozinha. "Eu vou reerguer o Estado, sanar as feridas e devolver a alegria da vida à população."

As eleições presidencial e parlamentares marcadas para 14 de maio podem mudar drasticamente o cenário político da Turquia, uma das 20 maiores economias do mundo e aliada dos Estados Unidos na Otan. Sondagens de opinião sugerem que Erdogan está mais vulnerável nas urnas que em qualquer outro momento de seus 20 anos como político predominante no país.

Atribuída por muitos economistas à sua gestão, a inflação crônica está em 50% e já erodiu os orçamentos familiares, deixando eleitores revoltados. Os terremotos devastadores de fevereiro, que deixaram mais de 50 mil mortos no país, suscitaram indignação com a lentidão da resposta e questionamentos sobre se a falha do governo em frear construções negligentes teria contribuído para aumentar o total de mortos.

Os anos de Erdogan na Presidência o converteram na face da política externa turca. Seus apoiadores dizem que ele fortaleceu a estatura da Turquia no mundo, mas críticos o acusam de ter personalizado excessivamente as relações internacionais, enfraquecendo a diplomacia de seu país.

Erdogan conservou laços com a Ucrânia e, ao mesmo tempo, reuniu-se com o presidente russo, Vladimir Putin, a despeito da guerra entre os dois países. Utilizou o poder de veto da Turquia para dificultar a ampliação da Otan, levando aliados a colocar suas lealdades em dúvida.

Kilicdaroglu promete que, se for eleito, governará de modo diferente. Ele está apostando que muitos turcos querem mudança. Primeiro, porém, ele precisa enfrentar Erdogan, que é hábil em disputas eleitorais, endureceu seu controle do Estado e pode mobilizar os recursos públicos para sua campanha.

"Kilicdaroglu é a antítese de Erdogan", disse Asli Aydintasbas, estudiosa da Turquia no Brookings Institution. "Enquanto o discurso de Erdogan é agressivo e viril, Kilicdaroglu é cavalheiresco, de fala suave. Em termos de plataforma, ele não apenas é democrata como está prometendo ser um unificador."

Pesquisas recentes dão ligeira vantagem a Kilicdaroglu. Há dois outros candidatos na disputa. Um deles não deve receber muitos votos. O outro é ex-membro do partido de Kilicdaroglu, alguém que pode desviar votos oposicionistas, forçando a realização de um segundo turno contra Erdogan em 28 de maio.

Desde 2010, Kilicdaroglu lidera o Partido Republicano do Povo (CHP), o maior da oposição, que tem sido derrotado nas urnas por Erdogan e o governista Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP).

Em 2009, Kilicdaroglu perdeu a eleição para prefeito de Istambul, a maior cidade da Turquia e motor econômico do país. Os candidatos de seu partido também perderam em Istambul em 2014 e nas corridas presidenciais contra Erdogan em 2014 e 2018.

O CHP não conseguiu aumentar significativamente sua presença no Parlamento em quatro eleições desde 2011 e, em duas ocasiões, fracassou em bloquear referendos que ampliaram os poderes de Erdogan.

Antes das eleições municipais realizadas em todo o país em 2019, Erdogan escarneceu do histórico de Kilicdaroglu. "Você não conseguiria sequer pastorear uma ovelha", disse ele, dirigindo-se retoricamente a Kilicdaroglu. "Você perdeu nove eleições. Agora vai perder a décima."

Os oposicionistas dizem que as eleições de 2019 foram um modelo para uma vitória, pois nelas a oposição derrotou os candidatos de Erdogan em várias cidades, incluindo as maiores do país –Ancara, a capital, e Istambul, onde o atual presidente lançou sua carreira política como prefeito, na década de 1990.

Possivelmente oferecendo mais um vislumbre do futuro, a comissão eleitoral do governo anulou os resultados de 2019 em Istambul, alegando irregularidades e determinando que a eleição fosse refeita. A oposição venceu também na segunda vez.

Para evitar mobilizar os seguidores ferrenhos do presidente, Kilicdaroglu raramente cita Erdogan pelo nome quando o critica. Mas, depois dos terremotos devastadores no sul do país, ele acusou o presidente de promover políticas que deixaram a Turquia vulnerável a desastres dessa natureza. "Há uma pessoa responsável por tudo isso: Erdogan", disse Kilicdaroglu durante visita à área devastada pelo terremoto.

Tanto Erdogan quanto Kilicdaroglu cresceram pobres –o primeiro em um bairro de classe baixa de Istambul, o segundo num povoado isolado na região central do país.

Kilicdaroglu conta que, quando era criança, passou anos usando o mesmo par de sapatos. Quando era estudante de economia numa universidade em Ancara, caminhava a todos os lugares para economizar com transporte. Ele frequentemente escreve seus discursos no verso de folhas de papel usadas.

Depois da universidade, Kilicdaroglu trabalhou por quase 30 anos como funcionário civil e comandou a administração de previdência social do país. Sua modéstia financeira o distingue de Erdogan, que exala ostentação e gastou centenas de milhões de dólares na construção de um novo palácio presidencial que é maior que a Casa Branca, o Kremlin ou o Palácio de Buckingham.

Depois de se aposentar do funcionalismo público, Kilicdaroglu foi eleito para uma cadeira no Parlamento e atraiu a atenção nacional quando confrontou executivos e autoridades na TV, acusando-os de corrupção.

Em 2010, quando um escândalo envolvendo um vídeo de sexo forçou seu predecessor a se demitir, Kilicdaroglu tornou-se presidente de CHP, o partido de Mustafa Kemal Ataturk, que fundou a Turquia após a queda do Império Otomano, cem anos atrás.

Em 2017, quando tinha 69 anos, para protestar contra a prisão de um colega parlamentar por acusações de espionagem que ele qualificou como falsas, Kilicdaroglu caminhou a pé de Ancara a Istambul, percorrendo a trajetória de 400 km em 23 dias, erguendo um cartaz dizendo "justiça".

A marcha se encerrou com um grande comício, mas o impulso que gerou para desafiar o que caracterizou como a instrumentalização do Judiciário por Erdogan se desfez em pouco tempo.

Críticos notaram que Kilicdaroglu votara a favor da lei que eliminou a imunidade legal de membros do Parlamento, abrindo o caminho para a prisão de seu colega e outras figuras políticas.

Kemal Kilicdaroglu gesticula durante evento em Canakkale, no oeste da Turquia
Kemal Kilicdaroglu gesticula durante evento em Canakkale, no oeste da Turquia - Ozan Kose - 11.abr.23/AFP

Nesse mesmo ano, os resultados de um referendo que ampliou os poderes de Erdogan foram manchados por acusações de fraude, mas Kilicadroglu não reagiu à altura. Suas críticas em muitos casos brandas a Erdogan levantaram dúvidas quanto à sua capacidade de resistir às manobras do presidente que ele deve enfrentar na eleição. "Estamos nas mãos de um burocrata que peca pelo excesso de cautela na maior parte do tempo", disse Soli Ozel, professor de relações internacionais na Universidade Kadir Has.

Por ora, porém, Kilicdaroglu é a única esperança para os que querem um líder que não seja Erdogan. "Esta não é uma eleição para abrir as portas do paraíso", disse Ozel. "É para fechar as portas do inferno."

Tradução de Clara Allain

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