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Prédio cedido a indígenas no Canadá traz mais desafios do que reparação

Edifício doado por principal empresa local tem altos custos, e debate coloca em dúvida objetivo real da ação

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Norimitsu Onishi
Manitoba (Canadá) | The New York Times

Uma troca cheia de simbolismo foi formalizada na loja de departamentos da Hudson’s Bay Company, em Winnipeg, no Canadá: o presidente da empresa mais antiga da América do Norte e uma das mais icônicas do Canadá aceitou duas peliças de castor e duas peles de alce de um líder indígena em troca de um prédio que foi no passado o carro-chefe da empresa no país.

A cerimônia ocorreu um ano atrás, quando a Hudson’s Bay, empresa que foi licenciada para fundar a colônia que se tornaria parte do Canadá, doou seu edifício de seis andares e 56 mil metros quadrados no centro de Winnipeg a um grupo de nações originárias.

Mas, desde então, algo que parecia um ato de reconciliação passou a atrair discussão intensa, à medida que foram ficando claros o valor do edifício e o custo de reformá-lo.

A antiga loja de departamentos da Hudson's Bay Company no centro de Winnipeg, no Canadá
A antiga loja de departamentos da Hudson's Bay Company no centro de Winnipeg, no Canadá - Nasuna Stuart-Ulin - 5.mar.23/The New York Times

Afinal, teria sido um presente real ou uma doação sem valor? A doação do prédio chamou a atenção para a relação entre a Hudson’s Bay e os povos indígenas do Canadá, além do papel destes na história de um país que nasceu do comércio de peles entre eles e a empresa.

O premiê Justin Trudeau e outros que estiveram presentes na cerimônia saudaram a entrega do prédio aos povos indígenas como um gesto de reconciliação entre o Canadá e sua população indígena oprimida.

Mas, agora que o clima de boa vontade está se dissipando, os detalhes da transação estão levando a questionamentos sobre justiça econômica no momento em que o país busca uma reconciliação com suas comunidades originárias. Os líderes indígenas querem converter a grande estrutura num centro que terá utilizações diversas para sua comunidade e que incluiria restaurantes, um jardim na cobertura e um centro de cura incorporando a medicina ocidental e a tradicional.

Em 2019, avaliadores imobiliários disseram que o prédio não valia nada –ou até menos que nada, já que simplesmente as renovações necessárias para deixá-lo em linha com o código de edificação atual custariam até 111 milhões de dólares canadenses (R$ 407 milhões).

Durante gerações –pelo menos para fregueses que não fossem indígenas–, uma visita ao centro de Winnipeg não teria sido completa se não incluísse uma passagem pelo monólito neoclássico da Hudson’s Bay, espalhado pelos melhores quarteirões do distrito comercial.

Assim, a transferência do prédio foi um ato significativo, especialmente para Darian McKinney, 27, um dos dois arquitetos indígenas a quem foi entregue o projeto de transformação. Como muitos outros indígenas, McKinney nunca havia ido à loja, apesar de ter crescido em Winnipeg.

Além de não ter condições financeiras de fazer suas compras na Hudson’s Bay, ele sabia que indígenas muitas vezes não eram bem-vindos na loja. Ele sabia, por seus avós, de um passado não muito distante em que eles não podiam deixar suas reservas para visitar as cidades sem obter um passe de um "agente índio".

"Os indígenas eram excluídos do centro de Winnipeg", comenta Reanna Merasty, 27, outra arquiteta indígena.

A nova proprietária do prédio é a Organização dos Chefes Indígenas do Sul, que representa 24 povos originários de Manitoba. A entidade quer converter o prédio em "um espaço de reconciliação econômica e social" de sua comunidade em Winnipeg, cidade que tem a maior população indígena urbana do Canadá. A organização ainda está tendo dificuldade em levantar 20 milhões de dólares canadenses dos 130 milhões que seriam necessários.

Por enquanto, a grande estrutura está praticamente vazia. Apenas manequins sem roupas, um pôster de Justin Bieber de cueca Calvin Klein e alguns cartazes empoeirados dizendo "essa loja será fechada, liquidação total" lembram os dias finais da loja de departamentos.

No século 20 a Hudson’s Bay se reinventou, passando do comércio de peles para uma empresa varejista moderna e abrindo lojas de departamentos em áreas comerciais dos centros de cidades. Mas em 2020, quase um século depois de inaugurada, a loja de Winnipeg foi fechada, vítima da pandemia e das compras online.

Em 2020, apenas dois dos seis pisos do prédio ainda estavam em uso, e seu restaurante principal, o Paddlewheel, havia fechado anos antes. A Hudson’s Bay se esforçou por anos para se desfazer do prédio. Tentou doá-lo à Universidade de Winnipeg, que o recusou devido aos custos de reparo e manutenção que seriam necessários.

Desde 2008 pertencente ao magnata imobiliário americano Richard Baker, a Hudson’s Bay não tinha como se livrar de uma estrutura sem valor que ela não podia demolir, mas sobre a qual era obrigada a continuar pagando impostos. Em 2019, contra a vontade da empresa, o prédio fora designado parte do patrimônio histórico nacional.

Mas então a Organização de Chefes Indígenas do Sul procurou a Hudson’s Bay para se oferecer a receber o prédio e convertê-lo em um centro de vida indígena, contou o diretor da entidade, Jerry Daniels.

"É apropriado, porque foram os povos indígenas que realmente construíram a Hudson’s Bay. Essa é a história que precisa ser contada: que fomos nós que construímos este país na realidade."

Outros, porém, criticaram a transação e o que a motivou. "O fato de que a empresa Hudson’s Bay explorou nossa comunidade, arrancou todos os recursos e o dinheiro que pôde de nossa comunidade e depois deixou essa monstruosidade de um problema no centro da cidade –isso é o colonialismo personificado", disse Niigaan Sinclair, professor de estudos indígenas na Universidade de Manitoba e membro do grupo de nações originárias Anishinaabe.

Daniels disse que sua organização obteve 110 milhões de dólares canadenses de fontes governamentais, incluindo empréstimos, doações e incentivos fiscais, e está buscando financiamento para cobrir o restante. Disse também que espera que a Hudson’s Bay ofereça ajuda.

A empresa se negou a dar declarações para esta reportagem, oferecendo um comunicado geral que não mencionou detalhes da entrega de seu prédio. Baker, o 39º presidente da Hudson’s Bay, também se recusou a falar e em vez disso enviou um comunicado. "A Organização de Chefes Indígenas do Sul é proprietária plena do prédio e o opera, tendo o controle de todos os aspectos de seu desenvolvimento futuro", disse ele, acrescentando que a empresa apoia a visão da organização indígena.

Mas há ceticismo profundo em Winnipeg quanto às chances de a renovação ocorrer sem aporte financeiro adicional considerável. Além da Universidade de Winnipeg, a companhia de água da província, Manitoba Hydro, e a Galeria de Arte de Winnipeg também haviam rejeitado uma oferta de assumirem o prédio, considerando que o custo seria excessivo.

Wins Bridgman, arquiteto de Winnipeg que já trabalhou com grupos indígenas, incluindo a organização dos Chefes do Sul, disse que a Hudson’s Bay aproveitou sem pensar duas vezes uma oportunidade de se desfazer de um prédio "que não valia nada, para começo de conversa", e que o governo não está contribuindo o suficiente para a obra custosa de reforma e renovação para que ela possa ser feita.

"Então a gente se pergunta por que a coisa não funciona", disse ele. "Preste atenção ao que as pessoas lhe dão e por que estão dando."

Tradução de Clara Allain

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