Descrição de chapéu The New York Times China

China interfere em estilo árabe de mesquitas e aperta controle contra muçulmanos

Região de Nabu assiste a enfrentamentos entre polícia e moradores locais que resistem à repressão de Pequim

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Vivian Wang
Nagu (China) | The New York Times

Andando por Nagu, uma cidade pequena nas montanhas do sudoeste da China, os sinais de uma vibrante comunidade muçulmana estão visíveis em toda parte.

Alto-falantes transmitem trechos de uma tradução chinesa do Alcorão. Mulheres com lenço na cabeça buscam seus filhos na escola. Textos em escrita árabe decoram a fachada das casas.

Sobre todo esse ambiente se eleva a mesquita Najiaying, um prédio branco coroado por uma cúpula dourada e quatro minaretes de 70 metros de altura. Há décadas a mesquita é motivo de orgulho da minoria étnica muçulmana hui que vive nesta região.

A mesquita Najiaying em Nagu, na província de Yunnan, na China
A mesquita Najiaying em Nagu, na província de Yunnan, na China - Vivian Wang - 9.jun.23/The New York Times

No mês passado, essa mesquita foi palco de um enfrentamento. Na manhã de 27 de maio, após as autoridades enviarem guindastes de construção para o pátio da Najiaying, uma multidão de moradores enfrentou centenas de policiais enviados para supervisionar o trabalho. Enquanto os policiais bloqueavam a mesquita e usavam spray de pimenta, moradores lançavam garrafas de água e tijolos.

Os raros confrontos, descritos em entrevistas com testemunhas oculares e capturados em vídeos postados nas redes sociais, mostram como um aspecto da campanha do Partido Comunista Chinês para exercer maior controle sobre a religião pode se tornar mais violento.

Desde que o líder Xi Jinping chegou ao poder, mais de uma década atrás, o partido já demoliu igrejas cristãs, arrasou encraves budistas tibetanos e encarcerou muçulmanos uigures em campos ditos de reeducação, em nome da segurança política.

Mas o partido também tem perseguido grupos menos conhecidos, incluindo os hui, que compõem menos de 1% da população nacional e historicamente se assimilaram bem à maioria étnica han.

O partido tem sistematicamente fechado, demolido ou redesenhado à força mesquitas em encraves hui, condenando características arquitetônicas arábicas, como domos e minaretes, como prova de influência externa indesejada sobre o islã na China. A resistência tem sido limitada, e a mesquita em Nagu, ao lado de outra grande na cidade próxima de Shadian, é uma das últimas mesquitas importantes com elementos arquitetônicos como essas que ainda está em pé na China.

Mas quando autoridades locais anunciaram planos para remover os domos das duas mesquitas e reconstruir seus minaretes em estilo supostamente mais chinês, habitantes de Nagu se opuseram.

"Este telhado representa nosso respeito e liberdade", disse Na, morador hui da cidade que tem 30 e poucos anos e pediu para ser identificado apenas por seu sobrenome, por temer retaliações do regime. Como muitas outras na cidade, a família de Na ajudou a pagar pelas reformas mais recentes da mesquita, no início dos anos 2000, quando os minaretes foram acrescentados à estrutura.

"Agora estão dizendo que a voz deles vale mais que nossa liberdade de escolha."

As mesquitas de Nagu e Shadian têm importância na história da relação de Pequim com o islã, que oscila entre conflito e coexistência. A província de Yunnan, onde as duas se situam, é a mais etnicamente diversificada do país. Os huis –a maioria dos quais falam o mandarim, mas se distinguem por sua fé muçulmana— vivem ali há séculos.

A primeira versão da mesquita de Nagu foi construída no século 14 em um estilo chinês tradicional, disposta em volta de um pátio central. Os muçulmanos de Yunnan prosperaram como mercadores que comerciavam com o Sudeste Asiático. Depois que os comunistas chegaram ao poder, as autoridades começaram a tachar a religião de contrarrevolucionária. Foi o caso especialmente durante o período de turbulência política conhecido como Revolução Cultural, entre 1966 e 1976.

Os muçulmanos de Shadian resistiram, e em 1975 as Forças Armadas destruíram a cidade.

Mesquita remodelada em Nagu, na província de Yunnan, onde a cúpula e os minaretes do edifício traseiro foram substituídos por um telhado de estilo chinês
Mesquita remodelada em Nagu, na província de Yunnan, onde a cúpula e os minaretes do edifício traseiro foram substituídos por um telhado de estilo chinês - Vivian Wang - 9.jun.23/The New York Times

Após a Revolução Cultural, quando a China começou a se abrir para o mundo, o regime se desculpou pelo massacre. Apoiou a reconstrução de Shadian e deixou que moradores –muitos dos quais podiam viajar para o exterior pela primeira vez— construíssem a Grande Mesquita, a maior no sudoeste da China, em seu estilo arábico. Inspirado na Mesquita do Profeta em Medina, na Arábia Saudita, o edifício comporta 10 mil pessoas e seus minaretes são visíveis a quilômetros. Autoridades a promoveram como atração turística.

A mesquita de Nagu, a 145 km de Shadian, também cresceu e evoluiu, tornando-se um centro regional de formação de imãs. Quando os fiéis locais acrescentaram um domo e outros elementos arábicos, a partir dos anos 1980, o regime não fez objeção. Em 2018, a mesquita ganhou o status de relíquia cultural.

"Essas mesquitas simbolizam o fato de o regime ter reconhecido que errou durante a Revolução Cultural", diz Ruslan Yusupov, que estuda a China e o islã na Universidade Harvard. Para ele, a mesquita de Shadian, em especial, lembra "tanto a violência quanto a recuperação patrocinada pelo Estado".

Em 2021, chegou a Nagu a chamada campanha de "significação", para remover elementos arábicos. Representantes do regime começaram a percorrer as casas de moradores, em alguns casos diariamente, para tentar persuadi-los a apoiar modificações à mesquita. Um outdoor na cidade exibe um desenho do plano: a mesquita sem domo e com os minaretes enfeitados com saliências laterais em camadas, como uma pagoda. Recentemente, funcionários públicos também têm ido de porta em porta em Shadian.

"Devido à grande autoridade que esses lugares ocupam na imaginação dos muçulmanos, o governo teve que deixar essas duas mesquitas para o final", diz Ruslan Yusupov.

Para moradores juis de Nagu, o plano de reformas da mesquita foi precursor de uma repressão mais ampla a seu modo de vida. Uma mulher na casa dos 30 anos cujo sobrenome também é Na (um nome comum na região de Nagu) contou que cresceu brincando e estudando na mesquita. Vizinhos e parentes haviam se mudado para outras partes do país para fazer faculdade, mas retornaram para viver no local graças ao ambiente de cidade pequena e religiosa, onde podiam transmitir seus valores muçulmanos.

Autoridades não estão recuando. Algumas horas depois de o enfrentamento começar, os policiais se retiraram da mesquita, antes das orações do meio-dia. Mas no dia seguinte autoridades divulgaram nota denunciando a "grave perturbação da ordem social" e prometendo "repressão severa". Nos dias seguintes, a mensagem foi transmitida várias vezes pelos alto-falantes, incluindo tarde da noite.

Comentários islamofóbicos se multiplicaram nas redes sociais chinesas, fortemente censuradas, incluindo declarações de comentaristas ligados ao governo. Em Nagu, moradores continuavam a entrar e a sair da mesquita, mas o policiamento continuou rígido, com um drone sobrevoando o local. Policiais à paisana abordaram uma repórter do New York Times e a fizeram ser levada de carro para fora da cidade.

Autoridades em Shadian também estavam em estado de alerta; funcionários interceptaram a repórter na estação de trem. Mas concordaram em levá-la à Grande Mesquita.

A Grande Mesquita de Shadian, na província de Yunnan, na China - Vivian Wang/The New York Times

"É claro que o Alcorão veio da Arábia Saudita, mas depois de chegar à China é preciso que se adapte", diz Li Heng, funcionário do escritório local de assuntos étnicos e religiosos. "Quando nossos imãs fazem sermões, precisam integrar a eles os valores socialistas fundamentais que o governo promove."

Li insiste que as autoridades não estão interferindo na liberdade religiosa e que o plano só seria implementado com o aval da população local. "O patriotismo é a forma mais elevada de crença religiosa."

Em Nagu, os guindastes continuavam no pátio da mesquita, vários dias após os embates. A demolição provavelmente seria inevitável, diz Na, o morador hui. Mas ele espera que as pessoas possam conservar outras liberdades das quais não estão dispostas a abrir mão. Para ele, isso inclui o direito de transmitir sua religião para seus filhos. "Se você não proteger o que é mais importante para você, outros o verão como alguém para quem nada é imprescindível e vão pisoteá-lo."

Tradução de Clara Allain

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