Descrição de chapéu The New York Times

Índia convive com zona de guerra em estado tomado por disputa étnica

País mais populoso do mundo e em ascensão econômica vê resultado de escassez de recursos e oportunidades

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Suhasini Raj Alex Travelli
Churachandpur e Nova Déli | The New York Times

Centenas de pessoas expulsas de suas casas em chamas. Aldeias, até campos de refugiados, devastadas com tiroteios. Homens, mulheres e crianças espancados e incendiados por multidões enfurecidas.

A Índia, o país mais populoso do mundo e lar da economia que mais cresce, agora também é uma zona de guerra, em que semanas de violência étnica no remoto estado de Manipur, no nordeste do país, já mataram cerca de cem pessoas. Zonas militarizadas agora cruzam o estado, patrulhadas por mulheres locais, vistas como menos impulsivas que os homens. Milhares de soldados foram enviados para conter a luta, reduzindo forças em outras partes da Índia, incluindo a fronteira com a China.

Mãe e filho, que fugiram da violência étnica em sua aldeia, esperam com seus pertences do lado de fora de um escritório que coordena esforços de socorro, perto de Churachandpur, no estado indiano de Manipur - Saumya Khandelwal/The New York Times

Mais de 35 mil pessoas estão refugiadas, muitas das quais vivendo em campos improvisados. O serviço de internet foi cortado –uma tática cada vez mais comum do governo indiano–, e as restrições de viagem tornaram difícil para o resto do mundo ver essa realidade. O desenvolvimento foi trepidante num país cujos 1,4 bilhão de habitantes geralmente conseguem conviver, apesar de pertencerem a milhares de grupos étnicos às vezes rivais. E apresenta uma imagem indesejável de instabilidade para um governo nacional focado em retratar a Índia como uma potência global em ascensão.

"É um pesadelo, uma guerra civil", diz Mairembam Ratan, conselheiro profissional que escapou com a ajuda do Exército. Manipur está hoje dividida em zonas étnicas, enquanto fervilham antigas tensões entre dois grupos –os meiteis, uma pequena maioria no estado, e as tribos das colinas conhecidas como kukis. Os cidadãos que pertencem ao grupo errado podem não passar com segurança. Muitos pintaram sua etnia nas portas das casas, para que não fossem queimadas em caso de identidade equivocada.

O estado foi dividido, num esforço para evitar a violência direcionada que o engolfou nos primeiros dias do conflito. Na noite de 4 de maio, a estudante de enfermagem Agnes Neihkhohat Haokip, 20, estava em seu dormitório na capital do estado, Imphal, quando um bando de cerca de 40 homens invadiu o lugar.

"Estuprem! Torturem! Cortem em pedaços!" As mulheres meitei gritavam, enquanto os agressores esmurravam Haokip, arrancando seus dentes da frente e mordendo suas mãos.

Três semanas depois, Haokip, que é uma kuki, permanecia numa unidade de terapia intensiva. No final do corredor, no necrotério, havia ampla evidência do conflito civil ao qual ela teve a sorte de sobreviver: 23 cadáveres, a maioria com ferimentos de bala no peito ou estômago. "Estou com tanto medo que não consigo tirar aquela noite da minha mente", diz Haokip, soluçando. "Preocupo-me com meu futuro."

Os restos queimados de uma localidade de Kuki, no estado indiano de Manipur
Os restos queimados de uma localidade de Kuki, no estado indiano de Manipur - Saumya Khandelwal/The New York Times

Durante séculos, Manipur foi um reino independente, ocupando um vale fértil nas montanhas verdejantes entre Mianmar e o que os locais ainda chamam de "continente" indiano. Um berço poliglota da cultura, o território –mais próximo do Vietnã do que de Déli– misturava tradições cortesãs importadas da Índia com as línguas e os costumes trazidos por ondas de colonizadores do Leste Asiático.

O conflito atual reflete a escassez de recursos e oportunidades econômicas que definem grandes partes da Índia hoje. Em 3 de maio, um grupo liderado por estudantes, principalmente kukis, marchou em protesto depois que um tribunal decidiu a favor dos meiteis que exigiam ser classificados como "tribais" e receberam um status especial que lhes permitia comprar terras nas montanhas e ocupar parte dos cargos públicos. Confrontos armados ocorreram. Em dois dias, pelo menos 56 pessoas morreram.

Embora esse tenha sido o pior momento da violência, o derramamento de sangue não parou mais de um mês depois, com os kukis sofrendo a maioria das mortes.

Os ressentimentos entre os dois grupos foram alimentados por líderes políticos. O governo de Manipur, estado de 3,7 milhões de habitantes, é controlado por meiteis. Depois que o premiê Narendra Modi levou seu Partido Bharatiya Janata (BJP) ao poder em Nova Déli, o ministro-chefe do estado, N. Biren Singh, e seus seguidores meitei se juntaram ao partido em ascensão.

Singh apoiou fortemente as queixas dos meiteis. No ano passado, ele confundiu migrantes da guerra civil em Mianmar com seus parentes étnicos kuki, alimentando entre os meiteis temores de um influxo de refugiados, embora muito poucos estejam em Manipur. Ele culpou os migrantes de Mianmar pelos problemas de dependência de drogas do estado, acusando-os de cultivar papoulas. E como as florestas nesta parte da Índia se tornaram cobiçadas como terras para turismo, madeira e plantações de óleo de palma, Singh disse que os migrantes são responsáveis pelo desmatamento.

Seu gabinete não respondeu a repetidos pedidos de comentários. Mas, depois que a violência estourou, ele chamou os kukis que pegaram em armas de "terroristas" que estavam "tentando destruir Manipur".

Khuraijam Athouba, porta-voz do maior grupo da sociedade civil que representa os meiteis, acusou o que chamou de "militantes kuki" de trazer imigrantes em situação irregular para dominar os meiteis em números absolutos. Na quarta-feira (7), o grupo de Athouba organizou uma convenção que "declarou guerra aos narcoterroristas ilegais". O general Anil Chauhan, principal oficial militar do país, rejeitou a afirmação de que os kukis estavam envolvidos em terrorismo. "Esta situação particular não tem nada a ver com contrainsurgência, e é principalmente um choque entre duas etnias."

Embora semear divisões religiosas tenha sido um trunfo do partido nacionalista hindu na temporada eleitoral, as linhas são traçadas de outro modo em Manipur. O povo meitei é em sua maioria hindu, e o povo kuki é na maioria cristão. Mas a religião tem relativamente pouco a ver com a animosidade recíproca.

Escola temporariamente convertida em campo de socorro para refugiados meitei, deslocados pela violência étnica
Escola temporariamente convertida em campo de socorro para refugiados meitei, deslocados pela violência étnica - Saumya Khandelwal/The New York Times

Haokip, que foi espancada por uma multidão, está se recuperando num hospital nas colinas onde predominam os kukis. Ela teme não poder voltar a Imphal para terminar seus estudos de enfermagem.

Outro kuki, Chamelen Hangshing, 30, disse que ele e outros aldeões trocaram tiros no início desta semana com vigilantes meiteis. Um menino de sete anos foi atingido na cabeça por uma bala perdida enquanto se abrigava com sua família num acampamento do governo.

Uma ambulância tentou levá-lo a um hospital, mas foi interrompida, e três de seus passageiros, incluindo o menino e sua mãe, foram espancados e queimados vivos, segundo o tio do menino, Jeffrey Hangshing.

Os meiteis também compartilharam algumas dificuldades. Robita Moirangthem, uma professora de 30 anos, e sua mãe fugiram de casa e passaram a noite escondidas numa latrina. "Está tudo acabado. Não temos mais casa", diz Moirangthem. "Só queremos viver nossas vidas onde estão nossos lares. Por que criar animosidade contra nós, pessoas comuns?"

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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