Violência na França traz à memória revoltas de 2005 e 'DNA' de protestos

Há 18 anos, milhares de jovens foram às ruas por três semanas; gatilho foi parecido com o que agora volta a agitar o país

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Madri

Horas antes da escalada de violência na qual a polícia prendeu 150 pessoas na segunda noite de manifestações devido ao fato de dois agentes terem matado um adolescente a tiros no subúrbio de Paris, autoridades pediram muita calma à população francesa. Elas estavam com a memória voltada para 2005.

As falas do presidente Emmanuel Macron ("Precisamos de calma em todos os lugares porque não queremos uma situação que degenere"), do ministro do Interior, Gérald Darmanin ("apelo à calma"), e do prefeito de Nanterre, Patrick Jarry ("Vamos parar esta espiral destrutiva"), indicam que todos eles temem que a França seja sugada novamente em direção a uma revolta como a daquele ano.

À época, milhares de jovens, entre os quais muitos desempregados, protagonizaram atos durante três semanas. O saldo foi de 274 cidades afetadas, 8.973 carros incendiados, dezenas de prédios e lojas depredadas e 2.888 prisões.

Carros empilhados após serem queimados nos protestos de 2005, em ferro-velho localizado no subúrbio de Grigny
Carros empilhados após serem queimados nos protestos de 2005, em ferro-velho localizado no subúrbio de Grigny - Mehdi Fedouach/AFP

Consideradas os maiores protestos populares da França contemporânea, as revoltas de outubro e novembro de 2005 tiveram um estopim bastante parecido com o atual. Em 27 de outubro, três adolescentes de Clichy-sous-Bois, subúrbio a leste de Paris, esconderam-se da polícia, que buscava suspeitos de um arrombamento, em uma estação da rede elétrica.

Dois deles morreram eletrocutados, causando um apagão de energia na região. O incidente agravou tensões sobre racismo, intolerância religiosa, desemprego juvenil e brutalidade policial nos conjuntos habitacionais, causando uma convulsão social que se espalhou pelo país e fez o governo decretar estado de emergência por três meses.

Três pessoas morreram em decorrência dos protestos. Nascido na Argélia, Salah Gaham, 34, trabalhava como porteiro de um prédio em frente ao qual três carros foram incendiados em Besançon, município de 120 mil habitantes ao leste do país. Ele tentou extinguir os incêndios e morreu após inalar muita fumaça.

Situação mais grave aconteceu com o fotógrafo Jean-Claude Irvoas, 56, que tirava fotos nas ruas ao norte de Paris quando foi roubado e espancado até a morte por manifestantes. Por fim, na mesma região, Jean-Jacques Le Chenadec, 61, tentou extinguir um incêndio na lixeira próxima à sua casa quando foi atingido na cabeça pelo manifestante Salaheddine Alloul, 22. Em coma, morreu alguns dias depois.

Ônibus incendiado nas proximidades de Toulouse, cidade no sul da França, em novembro de 2005
Ônibus incendiado nas proximidades de Toulouse, cidade no sul da França, em novembro de 2005 - Lionel Bonaventure/AFP

Centenas de estudos foram realizados sobre os atos de 2005, e muitos discutem a razão de os franceses estarem sempre protestando —em 2018, antes da revolta atual, os coletes amarelos pararam o país com barricadas em estradas depois que Macron anunciou um aumento de preço dos combustíveis. Afinal, o povo que derrubou a monarquia para instalar uma república em 1789 tem o gene do protesto em seu DNA?

Em dezembro de 2005, o cientista político americano Jonathan Laurence e o historiador francês Justin Vaïsse escreveram "Entendendo os motins urbanos na França", ensaio em que abordam questões demográficas e lembram que o país "é um país de imigrantes e absorveu inúmeras levas de estrangeiros".

"Isso significa que os desafios da integração são muito maiores na França do que em outros países europeus, especialmente porque a maioria dos trabalhadores imigrantes, que chegaram nas décadas de 1960 e 1970, e suas famílias, que se juntaram a eles entre os anos 1970 e o presente, vêm de áreas rurais e tinham pouca educação. Isso não significa que eles não estejam sendo integrados ao mainstream francês, mas sua integração é certamente mais lenta e desafiadora (e as histórias de sucesso, cada vez mais frequentes, geralmente não são relatadas)."

Já o cientista político Frank Wilson, um dos autores mais citados na área, apresentou seu livro "Manifestações Políticas na França: Política de Protesto ou Política de Ritual?" da seguinte forma: "É incomum que mesmo um visitante casual de Paris não passe pela emoção de uma manifestação política francesa", citando atos de grupos como professores de ginástica, motociclistas e fazendeiros.

"Séculos de agitação política regular e protestos deram à França a reputação de ser 'contenciosa’. Um observador aponta a frequência das manifestações políticas e declara que os tumultos são ‘um esporte nacional'. De Gaulle se referiu à 'perpétua efervescência política' de seu país", escreveu Wilson.

A conclusão do especialista é que "manifestações na França são talvez menos atos de participação política do que ritos políticos, com o mesmo significado que os americanos jurando fidelidade à bandeira".

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