Restaurante com tema de guerra permite que ucranianos 'atirem em Putin'

Fundado há mais de 15 anos, Kriivka evoca Segunda Guerra Mundial, mas ganhou relevância durante conflito com Rússia

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Patricia Cohen
Lviv (Ucrânia) | The New York Times

Uma batida na porta de madeira sem identificação em frente à prefeitura de Lviv, no oeste da Ucrânia. Um homem de uniforme militar segurando um rifle de fabricação alemã responde. Ele exige a senha.

"Slava Ukraiini" (glória à Ucrânia) e "heroiam slava" (glória aos heróis) foram a resposta, e uma passagem escondida atrás de uma parede de livros se abre. O homem de uniforme não é um guarda. É o maître do Kriivka, conhecido restaurante temático que evoca a luta armada da Ucrânia pela independência contra a Rússia soviética e a Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

Retrato do presidente russo, Vladimir Putin, serve de alvo em restaurante temático que evoca a luta armada da Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial, em Lviv
Retrato do presidente russo, Vladimir Putin, serve de alvo em restaurante temático que evoca a luta armada da Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial, em Lviv - Maciek Nabrdalik - 10.fev.23/The New York Times

O restaurante cavernoso –decorado como um bunker subterrâneo– existe há mais de 15 anos. E o ambiente continua festivo e divertido, apesar da história brutal e sangrenta que serve de pano de fundo.

Os clientes ainda pedem doses de vodca multicoloridas em fila, e as paredes de tijolos continuam decoradas com estilhaços, rádios, mapas, artilharia e lanternas da década de 1940.

Mas, à medida que a guerra com a Rússia avança, o espaço ganhou uma nova ressonância na relativamente segura cidade de Lviv. Em uma visita recente, em vez dos turistas estrangeiros que o restaurante costumava atrair, ucranianos lotam as mesas. Moradores, soldados de licença e famílias que fugiram de cidades bombardeadas em outras partes do país apreciam comidas e bebidas. Crianças circulam, experimentando a coleção de capacetes e jaquetas ou duelando com as armas antigas.

Alina Bulauevska, sentada à mesa com sua família, veio de uma cidade próxima para comemorar seu 32º aniversário. "Esta é uma escapada para nós."

Soldados ativos deixaram centenas de insígnias militares contemporâneas –os emblemas de suas unidades. No centro da exibição, numa moldura, está uma do general Valeri Zalujni, principal comandante das Forças Armadas da Ucrânia. O restaurante convidou Zalujni para uma visita, disse um dos gerentes. O general de quatro estrelas respondeu enviando sua insígnia junto com uma enorme bandeira ucraniana, azul e amarela, na qual assinou seu nome e desenhou um coração com tinta vermelha.

"Ele respondeu que depois que vencermos ele virá comemorar", diz o gerente.

Em uma grande mesa com bandejas de salsichas gordas, legumes grelhados e panquecas de batata, Iulia Volkova está sentada com o marido, os filhos e alguns amigos. A família aluga um apartamento em Lviv desde que fugiu da cidade de Kharkiv, no nordeste do país, em março passado, juntando-se a cerca de 150 mil pessoas expulsas de suas casas que também passaram a morar aqui.

Eles comeram no restaurante várias vezes. "Nós amamos este lugar", diz Volkova por meio de um tradutor. Eles se dizem gratos por estarem em Lviv. Combatentes russos tomaram suas terras e negócios agrícolas e mataram a família de uma colega de classe de sua filha quando saía de uma igreja depois de rezar.

"Eles mataram todos que encontraram no caminho. Nós mesmos vimos", conta, apontando dois dedos para os olhos. Seu amigo larga uma caneca de cerveja e pega o telefone para mostrar um vídeo das paredes de sua casa, marcadas por buracos de bala e estilhaços incrustados.

Visitantes no Kriivka, restaurante temático em Lviv que evoca a luta armada da Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial
Visitantes no Kriivka, restaurante temático em Lviv que evoca a luta armada da Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial - Maciek Nabrdalik - 10.fev.23/The New York Times

Sievda Kerimova chegou recentemente a Lviv vinda de Kiev, a capital, por um motivo mais feliz. Veio encontrar o marido, um militar de 26 anos que tinha dez dias de folga. Em uma galeria de tiro ao lado de uma das salas de jantar, o casal pagou 75 hrivnias (cerca de R$ 10) para que Kerimova pudesse disparar dez balas de plástico num alvo de papel impresso com a imagem do presidente russo, Vladimir Putin.

Em outra sala, os clientes podiam atingir um enorme saco de pancadas estampado com o rosto dele.

O Kriivka é um dos vários restaurantes temáticos e lojas de presentes operados pelo grupo de restaurantes ucraniano !FEST. No andar de cima fica outro, O Mais Caro Restaurante Galego, decorado como um clube de maçonaria. Virando a esquina, fica a Lviv Coffee Mine, uma enorme cafeteria e loja subterrânea em que clientes podem usar um capacete de mineiro e cavar em busca de grãos de café.

Os restaurantes não fazem questão de precisão histórica. Em Kriivka, o patriotismo e a celebração generalizados eclipsam o legado muitas vezes feio do Exército Insurgente Ucraniano original, que liderou a luta por uma Ucrânia independente na década de 1940, mas consistia em extremistas que massacraram poloneses e judeus numa campanha de limpeza étnica.

Relembrar a luta pela independência, entretanto, é uma forma de os cidadãos expressarem orgulho por sua herança e apoio ao esforço de guerra. Comida e diversão –não aulas de história– estão no cardápio.

Parte das festividades da noite inclui uma caçada a espiões russos, ou "Moskali", termo pejorativo que os ucranianos usam para se referir aos russos. O jogo é liderado por um grupo de garçons vestidos como militares. Os presentes são interrogados com risos, depois levados a uma prisão improvisada e convidados a cantar uma canção patriótica antes de serem devolvidos à mesa. Enquanto isso, uma TV quase despercebida montada na parede transmite silenciosamente o noticiário da noite, uma entrevista com o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, falando sobre os ataques aéreos russos naquele dia.

A ucraniana Sievda Kerimova aponta para um retrato do presidente russo, Vladimir Putin, em uma galeria de tiro no restaurante temático
A ucraniana Sievda Kerimova aponta para um retrato do presidente russo, Vladimir Putin, em uma galeria de tiro no restaurante temático - Maciek Nabrdalik - 10.fev.23/The New York Times

Diferentemente de outras lojas e restaurantes de rua que foram obrigados a fechar durante os três alertas de mísseis do dia, o subterrâneo Kriivka pôde continuar servindo pierogies e vodca.

Em outra noite, Vitali Joutonijko, com o braço direito na tipoia, visitava o restaurante pela segunda vez com sua mulher, Alina, e a filha de 4 anos, Kiza. Ele estava em Lviv por duas semanas, em licença médica do Exército, recuperando-se de um ferimento que sofreu quando um projétil atingiu sua trincheira.

Questionado por que –depois de estar num bunker perto da linha de frente– ele agora gostaria de relaxar em um falso, Joutonijko riu. "Isto é diversão", disse ele. Então ele tentaria acertar um alvo com Putin na galeria de tiro? "Não estou interessado em atirar na imagem", disse ele. "Eu tenho um alvo real."

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