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O grupo religioso internacional acusado de abusos sexuais no Peru

Vaticano inicia auditoria para apurar possíveis crimes de integrantes da organização Sodalício de Vida Cristã

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Pierina Pighi
BBC News Brasil

Investigadores do Vaticano iniciaram na terça-feira (25), em Lima, no Peru, uma auditoria sobre o grupo católico Sodalício de Vida Cristã, acusado de corrupção e de abuso sexual e psicológico contra menores.

Nesta reportagem, publicada originalmente em 2016, contamos o que é o Sodalício de Vida Cristã, como ele foi formado e do que é acusado*.

Testemunhos de abusos contra o Sodalício de Vida Cristã no Peru começaram a aparecer no ano 2000
Testemunhos de abusos contra o Sodalício de Vida Cristã no Peru começaram a aparecer no ano 2000 - Getty Images via BBC

O grupo religioso Sodalício de Vida Cristiana (Sodalício de Vida Cristã, em português) foi fundado em 1971, tem mais de 20 mil seguidores em 25 países e foi reconhecido pelo papa João Paulo 2º em 1997.

Hoje, seus membros enfrentam acusações de abuso psicológico, físico e sexual contra menores, e o Ministério Público peruano passou a investigá-los em outubro de 2015. A apuração começou após a publicação do livro "Meio Monges, Meio Soldados", do jornalista Pedro Salinas em colaboração com a jornalista Paola Ugaz.

O texto reúne 30 depoimentos de abusos ocorridos ao longo de quase 30 anos, nos quais as supostas vítimas —que não foram nomeadas— apontam para o fundador do movimento, o leigo Luis Fernando Figari Rodrigo, e outros dirigentes da organização. Desses relatos, cinco narram episódios de abuso sexual, sendo que três apontam o fundador Figari como autor do crime.

Os três apresentaram seus casos ao Vaticano em 2011, mas por muitos anos não obtiveram resposta, conforme confirmado à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, em 2016 por Paola Ugaz e a ex-irmã sodálita Rocío Figueroa, que os ajudou a apresentar as denúncias.

Embora o grupo tenha admitido a ocorrência de abusos individuais de tipo físico e psicológico —mas não sexuais—, ele nega que sejam práticas estendidas a toda a organização.

Obediência absoluta

O Sodalício foi fundado há 45 anos com o nome de Sodalitium Christianae Vitae, uma homenagem à ideia de fraternidade entre os maristas. Foi criado como uma sociedade de vida apostólica, isto é, formado por leigos e sacerdotes consagrados que vivem em comunidades ou casas compartilhadas e realizam tarefas de evangelização.

Um ex-integrante, Martín Scheuch, disse à BBC que nos primeiros anos os membros do movimento liam livros fascistas. O livro "Meio Monges, Meio Soldados" afirma que um dos autores lidos era José Antonio Primo de Rivera, fundador da organização espanhola de inspiração fascista Falange Espanhola.

Scheuch relembrou ainda que uma das principais ideias com as quais o Sodalício surgiu foi a de que seus membros praticassem a obediência absoluta, em termos de horários, atividades, leituras, modo de vestir e até estudos. Figari, diz, costumava repetir uma frase que ilustrava o conceito: "Quem obedece nunca erra".

Rocío Figueroa, uma ex-irmã sodálita, comenta que esse conceito lhe parecia "superperigoso", porque fazia "perder a capacidade crítica" e, assim, "os superiores podiam ordenar qualquer estupidez".

Fernando Vidal, porta-voz do Sodalício, disse à BBC que, no início, quando os sodalits eram muito jovens, eles tomavam como referência velhos costumes da época. Mas garantiu que nunca houve restrição ou proibição de leituras, mas "recomendações durante o treinamento". Ele acrescentou que Primo de Rivera era só um dos muitos autores que liam. "O Sodalício é uma instituição religiosa, não política."

O Sodalício se estendeu do Peru a Brasil, Colômbia, Chile, Argentina, Equador, Costa Rica, Estados Unidos e Itália. Agora, a "Família Sodalita" (que também agrupa leigos não consagrados) inclui mais de 20 mil pessoas em 25 países. O grupo desfruta da lei canônica desde 1997, quando João Paulo 2º era papa.

Dormir em uma escada

Em 2000, a ordem começou a aparecer na imprensa por motivos não religiosos. Naquele ano, José Enrique Escardó Steck publicou uma série de colunas na revista peruana Gente, nas quais relatava os abusos psicológicos e físicos que diz ter sofrido durante o ano em que viveu nas comunidades do Sodalício.

Durante esse tempo, diz ele, seus superiores o obrigaram a dormir por um mês em uma escada e comer pudim de arroz com ketchup. Além disso, afirma que o intimidaram com uma faca no pescoço e o esconderam no banheiro comunitário quando sua mãe foi visitá-lo.

Fernando Vidal não nega testemunhos como os de José Enrique Escardó. "Acho que em situações como esta muitas coisas se juntam: os defeitos e problemas do senhor Figari, o contexto sócio-cultural dos anos 1960 e 1970, a juventude e a inexperiência de quem iniciou este caminho", disse.

Assegurou que esse tipo de prática, "independente de ser verdadeira ou não", não é realizada "há muitos anos em nenhuma das comunidades do Sodalício". O porta-voz do grupo reconheceu que esses casos de abuso físico e psicológico são "inaceitáveis", mas disse que foram casos isolados: "Temos a certeza de que foram acontecimentos isolados, limitados. Lamentáveis e inaceitáveis."

No entanto, aceitou que eles devem fazer mudanças na instituição e que estão "tomando consciência" dos "fracassos": "O Sodalício não se reduz a reclamações. Há muita gente boa e generosa". José Enrique também contou suas experiências em um programa jornalístico da TV peruana em 2001, mas a imprensa logo esqueceu o assunto.

Um menino nu em um hotel

Em outubro de 2007, a polícia encontrou o então pupilo Daniel Murguía em um hotel com um menino de 11 anos, de quem ia tirar fotos nuas. Murguía era muito próximo de Figari, o fundador da organização, conforme confirmado à BBC por sua própria irmã, Patricia.

Dois dias depois da prisão, o grupo Sodalício anunciou que estava expulsando Murguía por "esta situação, até agora desconhecida para nós, que consideramos inaceitável e que surpreendeu e atingiu dolorosamente a nossa comunidade". Após o episódio do hotel, ele passou um ano e meio preso.

Três anos depois, tudo parecia seguir na normalidade. Até que, em 2010, Figari renunciou ao cargo de superior do movimento de forma surpreendente após 39 anos "por motivos de saúde". Nesse mesmo ano, foi suspenso o processo de beatificação de Germán Doig Klinge, vigário-geral do Sodalício, falecido em 2001.

Cartão de Germán Doig distribuído quando o Sodalício o postulou para ser beato
Cartão de Germán Doig distribuído quando o Sodalício o postulou para ser beato - Reprodução

Em fevereiro de 2011, o jornal peruano Diario 16 publicou alguns testemunhos de abuso sexual que apontavam o candidato a beato como autor do crime. O Sodalício teve que reconhecer esses testemunhos como o verdadeiro motivo que os levou a interromper o processo de beatificação de seu ex-líder.

O livro "Meio Monges, Meio Soldados" recolhe o depoimento de quem afirma ser uma das vítimas de Germán Doig. "Ele era muito carinhoso", diz. Afirma que segurava sua mão e o abraçava nas salas privadas onde realizavam suas sessões de aconselhamento espiritual.

Nessas sessões, diz, eles ficavam nus para fazer exercícios de energia, e Doig o masturbava. Outra vítima afirma que, nessas sessões, Doig pediu que ele o penetrasse, como forma de "experimentar e ajudar outros", conforme indicado no livro. Outro dos testemunhos pertence a Rocío Figueroa, uma ex-integrante, que afirma que Doig tocou em seu seio em uma "sessão de ioga".

O visitante do Vaticano

Em abril de 2015, antes da publicação do livro "Meio Monges, Meio Soldados", a Igreja Católica nomeou o padre peruano Fortunato Pablo Urcey como visitante das casas do Sodalício. Em suas palavras, sua função seria "coletar informações sobre o modo de vida do Sodalício e a autoridade de Luis Fernando Figari". Embora tenha admitido que perguntou aos membros sobre os testemunhos de abuso, ele diz que investigá-los não era seu objetivo.

Fortunato Pablo foi a todas as casas do Sodalício no Peru e conversou com seus membros. Ele garantiu que "almoçou e compartilhou a Eucaristia com eles". Mas o padre disse à rede BBC em 2016 que não havia lido o livro completamente porque teve que avaliar a motivação dos autores ao publicá-lo.

Com base no relatório do visitante, o Vaticano decidiria se enviaria um investigador formal.

Testemunhos contra o fundador

Mas o escândalo não parou por aí. Em agosto de 2011, poucos meses depois de publicar a informação sobre Doig, o jornal peruano Diario 16 publicou depoimentos de abuso sexual envolvendo o próprio Figari.

Segundo o livro "Meio Monges, Meio Soldados", um ex-sodalit acusa Figari de lhe mostrar revistas pornográficas e lhe pedir que se sentasse sobre uma madeira. Outra das vítimas aponta no livro que, quando tinha 17 anos, Figari lhe disse que era hora de "abrir o terceiro olho para ver melhor as auras e que despertaria sua 'kundalini' depositando seu sêmen". Na época, o Sodalício e Figari negaram as acusações.

Após sua aposentadoria em 2010, Figari viveu entre Lima e Roma até se estabelecer na capital italiana em 2015. Na ocasião, Figari respondeu às acusações com uma carta aos congregados, divulgada pela mídia peruana. No texto, ele reconheceu ter "cometido erros, falhas e leviandades", mas negou o abuso sexual.

Segundo o ex-superior do Sodalício, Alessandro Moroni, que se aposentou da organização no final de 2020, Figari não participa mais da administração do grupo que fundou em 1971 em Lima.

Antes da investigação do Ministério Público em 2016, o advogado de Figari, Juan Armando Lengua Balbi, questionou o fato dos depoimentos do livro serem anônimos. "Não pode haver perpetradores se não houver vítimas claras", disse na ocasião, antes de dizer que o réu é inocente de todas as acusações.

*Os responsáveis pela investigação encomendada pelo Vaticano são o arcebispo de Malta, Charles Scicluna, e o padre espanhol Jordi Bertomeu. Sua missão inclui encontros com porta-vozes da organização, assim como com supostas vítimas e jornalistas que cobriram os possíveis casos de abuso e corrupção financeira.

Após questionamentos, Scicluna e Bertomeu apresentarão um relatório que será enviado ao papa Francisco.


Este texto foi originalmente publicado aqui.

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