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Argentina América Latina

'Efeito Milei' radicaliza deterioração econômica da Argentina

Dólar paralelo dispara no país, e governo anuncia desvalorização do peso

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São Paulo

O desempenho eleitoral de Javier Milei, da coalizão A Liberdade Avança, neste domingo (13) joga a economia argentina em um novo ciclo de deterioração, com potencial de aprofundar radicalmente os problemas socioeconômicos do país antes do primeiro turno das eleições presidenciais, marcado para 22 de outubro.

O primeiro impacto se dará via inflação. Nesta segunda (14), o dólar "blue", referência para o dia a dia, chegou a 695 pesos, com alta de 15% em relação a sexta. Com preços no país lastreados na moeda americana no câmbio paralelo, só isso deverá dar novo impulso à inflação, acumulada em quase 116% nos últimos 12 meses.

A nova taxa de câmbio para importar bens aumentou de 309 pesos para 376; e a usada para importar serviços, de 359 pesos para 438. Antes dessa desvalorização, analistas esperavam uma inflação de 8% para agosto. Daqui em diante, preveem um piso de 13%.

O candidato à Presidência da Argentina Javier Milei celebra resultado das eleições primárias, em Buenos Aires
O candidato à Presidência da Argentina Javier Milei celebra resultado das eleições primárias, em Buenos Aires - Alejandro Pagni - 13.ago.23/AFP

Em Nova York, o valor dos títulos da dívida argentina chegaram a afundar 12%, minando ainda mais a confiança internacional, impactando também as chances de o atual governo segurar as cotações do dólar. O Banco Central também elevou de 97% ao ano para 118% a taxa de juros (percentual próximo à inflação em 12 meses), em tentativa de estimular investimentos em pesos, não em dólares.

Milei, 52, propõe a dolarização total da economia e, numa proposta mais radical —e mal explicada—, a extinção do Banco Central. Mesmo que ele não vença o pleito à frente, o impulso inicial dos argentinos será comprar dólares o quanto antes, alimentando sua cotação e a inflação. Pois, para a dolarização, o governo teria de fazer uma maxidesvalorização do peso pelo câmbio oficial.

Como reação ao desempenho de Milei, o Banco Central desvalorizou nesta segunda em 18% a moeda argentina diante do dólar oficial ("mayorista"), para 350. Mesmo assim, o valor do "blue" é quase o dobro do oficial. Algumas consultorias chegam a estimar que, com a dolarização total, o valor do "blue" possa superar 2.000 pesos.

Milei sustenta que a economia argentina já é dolarizada e que seria natural o que propõe.

De fato, segundo o Indec, o IBGE do país, os argentinos tinham no final do ano passado US$ 261,8 bilhões (R$ 1,3 trilhão) guardados em casa, em cofres de empresas e bancos ou em contas externas regularizadas. O valor equivale a quase toda a dívida bruta argentina, de US$ 276,7 bilhões (R$ 1,4 trilhão).

É improvável, porém, que os argentinos voltem a colocar esse dinheiro em circulação, em um sistema bancário formal e dolarizado, frente ao desarranjo das contas públicas do país, que precisa muito de recursos para financiar o Estado e de montanhas de subsídios dirigidos aos mais pobres.

Se hoje o governo imprime pesos para pagar as contas, como faria sem poder emitir dólares? Estão frescos na memória os chamados "corralitos", com o confisco da poupança dos correntistas nos anos 2000.

Nos últimos dez anos, a taxa de pobreza no país saltou 15 pontos percentuais, levando 19,7 milhões dos 45 milhões de argentinos a essa condição. Para manter o tecido social, o país imprime pesos e despeja enormes subsídios às famílias, de contas de luz e gás a transferências de dinheiro que, direta ou indiretamente (via deduções de imposto), chegam a 95% das crianças e jovens com menos de 17 anos.

Em 2022, o Estado pagou 79% do custo da luz e 71% do gás a todos os conectados à rede. Segundo o Cippec, centro de políticas públicas apartidário, esses subsídios representaram 82% do déficit fiscal. Os subsídios em transportes (a gasolina custa menos da metade da brasileira) e energia consomem quase o dobro dos gastos em saúde e quase um terço a mais que a educação.

Também na última década, o funcionalismo nas três esferas de governo aumentou de 2,7 milhões para 3,4 milhões (17,4 pontos percentuais acima do crescimento populacional), segundo o Instituto Argentino de Análise Fiscal.

Por fim, o sistema previdenciário é altamente deficitário, com a maioria (55%) dos 9 milhões de aposentados não tendo contribuído para ele, de acordo com o Instituto de Desenvolvimento Social Argentino. Só 23% dos benefícios foram concedidos com a totalidade dos aportes.

Milei promete contornar essas despesas reduzindo o gasto público em 15% por meio de uma reforma do Estado —mas não explica o que aconteceria aos mais pobres e altamente dependentes dos subsídios.

O candidato, que obteve cerca de 30% dos votos nas primárias, ainda está longe da vitória. Afinal, eleitores mais moderados que votaram nos pré-candidatos do Juntos por el Cambio, Patricia Bullrich e Horacio Rodríguez Larreta, somaram por volta de 28,3%. E os da Unión por la Patria, de Sergio Massa e Juan Grabois, aproximadamente 27,3%. Somadas, as duas forças têm por volta de 55,6%.

Resta saber quantos deles embarcariam nas propostas radicais do vencedor deste domingo. Mas, até a eleição, o "efeito Milei" fará estragos, aprofundando as dificuldades que o novo presidente argentino —quem quer que ele seja— terá pela frente.

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