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Havaí: 'Turistas estão nadando na mesma água em que nosso povo morreu três dias antes'

Parte dos visitantes segue na ilha de Maui após incêndios que mataram mais de 100, e alguns chegaram depois da tragédia

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Holly Honderich Max Matza
Havaí | BBC News Brasil

Depois que incêndios florestais devastaram partes da ilha havaiana de Maui, um dos destinos turísticos mais populares dos Estados Unidos, as autoridades alertaram os visitantes para ficarem longe do local.

Mesmo assim, milhares permaneceram, e outros continuaram a viajar para lá, causando irritação aos moradores que sofreram com a tragédia. Na praia de Wailea, em Maui, na segunda-feira (14), o céu estava claro. Hotéis de luxo se alinhavam à beira-mar, os hóspedes espalhados na areia. Alguns nadavam no oceano, enquanto outros se sentavam sob guarda-sóis com toalhas brancas em suas cadeiras.

Em um dos hotéis, além de uma piscina, havia uma fonte de dois níveis e uma área com paredes de vidro para um papagaio. Havia uma tela com moldura de madeira com anúncio de um fundo de ajuda para os funcionários do resort —o primeiro sinal da destruição em Lahaina, a apenas 48 km da costa.

Muitos dos turistas de Maui atenderam aos pedidos para deixar a ilha após o incêndio; outros permaneceram
Muitos dos turistas de Maui atenderam aos pedidos para deixar a ilha após o incêndio; outros permaneceram - Holly Honredich/BBC

Após os incêndios florestais, os mais mortíferos da história moderna dos Estados Unidos, a frustração com os turistas que optaram por continuar com suas férias na região aumentou.

Muitos em Maui dizem que a devastação deixou ainda mais evidente o que é conhecido como os "dois Havaís" —um construído para o conforto dos visitantes, e outro, mais difícil, para os havaianos.

"É tudo borboleta e arco-íris quando se trata da indústria do turismo", disse um funcionário de um hotel que pediu para ter seu nome preservado. "Mas o que está por baixo é meio assustador."

Na semana passada, um dia após os incêndios florestais, o condado pediu aos turistas que deixassem Lahaina e a ilha como um todo o mais rapidamente possível.

As autoridades logo pediram às pessoas que evitassem totalmente a ilha, exceto para viagens essenciais.

"Nos próximos dias e semanas, nossos recursos coletivos e atenção devem se concentrar na recuperação de residentes e comunidades que foram forçadas a se retirar", disse a autoridade de turismo do Havaí.

Muitos viajantes seguiram o conselho. Logo após os incêndios, cerca de 46 mil pessoas deixaram a ilha. O gramado que separa o aeroporto da rodovia agora está repleto de fileiras e mais fileiras de carros alugados, que repentinamente foram deixados de lado.

Mas milhares de turistas permaneceram. Alguns ignoraram os pedidos para deixar Maui, enquanto outros chegaram após o incêndio —o que irritou alguns. "Se isso estivesse ocorrendo na sua cidade natal, você gostaria que viéssemos?", disse o morador Chuck Enomoto. "Precisamos cuidar dos nossos primeiro."

Outro morador de Maui disse à BBC que os turistas estavam nadando nas "mesmas águas em que nosso povo morreu há três dias", referência a uma excursão de mergulho na sexta (11) a 18 km de Lahaina.

Mais tarde, a empresa de snorkel se desculpou por realizar o passeio, dizendo que primeiro "ofereceu nossa embarcação durante a semana para entregar suprimentos e resgatar pessoas, mas seu design não era apropriado para a tarefa". No entanto, a oposição aos turistas não é isenta de complicações, já que a ilha depende economicamente desses viajantes. O Conselho de Desenvolvimento Econômico de Maui estimou que a "indústria do turismo" da ilha responde por quatro de cada cinco dólares gerados ali, chamando esses visitantes de "motor econômico" do condado.

"Você meio que foi criado para odiar turistas", disse o jovem funcionário do hotel. "Mas essa é realmente a única maneira de trabalhar nas ilhas. Se não for em hotelaria, é na construção civil."

Empresários expressaram preocupação de que o crescente sentimento antiturista pudesse prejudicar Maui ainda mais. "Tenho medo de que, se as pessoas continuarem vendo 'Maui está fechado' e 'não venha para Maui', os poucos negócios que restam vão acabar", disse Daniel Kalahiki, dono de um food truck em Wailuku. As vendas já caíram 50% desde o início do incêndio, diz ele. "E então a ilha vai perder tudo."

Wailea, em Maui, é uma área dominada por visitantes endinheirados
Wailea, em Maui, é uma área dominada por visitantes endinheirados - Holly Honderich/BBC

Ainda assim, nos dias seguintes ao incêndio, a disparidade entre os residentes de Maui —sofrendo com perdas catastróficas— e os pontos turísticos isolados foi evidenciada.

No Havaí, os habitantes locais enfrentam uma grave crise habitacional. Muitos moram em casas modestas de um andar em bairros como Kahlui e Kihei; alguns em residências multifamiliares, com cada família separada por uma cortina ou uma parede fina de compensado. E, para acompanhar o aumento do custo de vida, trabalhar em vários empregos é comum, segundo moradores ouvidos pela BBC.

Jen Alcantara minimiza a surpresa de trabalhar em dois locais: em uma companhia aérea canadense e em um cargo administrativo sênior no hospital de Maui. "Isso é o Havaí", disse ela.

Neste Havaí dos pobres, os efeitos dos incêndios estão por toda parte.

Daniel Kalahiki, dono de um food truck em Wailuku, no Havaí, diz que os turistas são 'essenciais' para evitar que o desastre de Lahaina se espalhe
Daniel Kalahiki, dono de um food truck em Wailuku, no Havaí, diz que os turistas são 'essenciais' para evitar que o desastre de Lahaina se espalhe - BBC

Em lojas e mercearias, os desabrigados procuram itens essenciais, tentando substituir seus pertences perdidos com o dinheiro que tiverem. Nos restaurantes, os trabalhadores podem ser vistos segurando as lágrimas e fazendo ligações para coordenar os esforços de socorro.

Coletas de dinheiro e de qualquer tipo de auxílio estavam sendo feitas para os sobreviventes em quase todos os lugares. Uma cafeteria em Kahului se ofereceu para refrigerar leite materno doado, e donos de food trucks, serviços para a linha de frente. Fazendeiros carregavam cachos de bananas para abrigos.

As coisas são diferentes nesse outro Havaí, distante da exuberância turística. Ao final de uma viagem de carro de 30 minutos do centro urbano da ilha até Wailea, lar dos resorts e aluguéis de temporada de luxo de Maui, a terra muda repentinamente: a grama marrom seca se torna um verde rico e úmido.

"É uma linha direta", disse um morador, outro funcionário de hotel que não quis ser identificado.

Excedente de carros para aluguel fica do lado de fora do aeroporto de Maui depois que milhares de visitantes deixaram a ilha
Excedente de carros para aluguel fica do lado de fora do aeroporto de Maui depois que milhares de visitantes deixaram a ilha - Holly Honderich/BBC

Dentro de Wailea, condomínios fechados fazem fronteira com campos de golfe, conectados a hotéis de luxo. Dentro desses hotéis, funcionários prestativos oferecem aulas de surfe e refeições à beira da piscina, incluindo um hambúrguer de US$ 29 (cerca de R$ 145).

A equipe disse à BBC que muitos dos hóspedes simpatizavam com as vítimas da crise no oeste da ilha. Outros reclamaram que as atividades programadas em Lahaina —passeios a cavalo, tirolesa— foram canceladas, disse Brittany Pounder, 34, funcionária do Four Seasons.

No dia seguinte aos incêndios, um turista da Califórnia perguntou se ainda poderia fazer sua reserva para jantar no Lahaina Grill —um restaurante em uma das áreas mais atingidas da cidade. "Não está tudo bem."

Há uma preocupação crescente de que a eventual reconstrução de Lahaina atenda ainda mais a este segundo Havaí. Os visitantes ricos já contribuíram para os preços exorbitantes das casas, comprando terras e propriedades num lugar onde a moradia própria está fora do alcance de muitos residentes.

Os bilionários Peter Thiel e Jeff Bezos têm casas em Maui, por exemplo. A apresentadora Oprah Winfrey é a maior proprietária de terras da ilha. Espalharam-se rumores de agentes imobiliários abordando proprietários havaianos em Lahaina, perguntando sobre possíveis negócios.

Vários moradores disseram à BBC que temem que Lahaina seja transformada em outro Waikiki, a elegante orla de Honolulu, dominada por arranha-céus à beira-mar e lojas de luxo.

"Não precisamos de outro Waikiki", disse Chuck Enomoto. "Mas é inevitável."

Este texto foi publicado originalmente aqui.

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