Disparada de preços na habitação força brasileiros a viverem em barracas em Portugal

Acampamento improvisado reúne dezenas de imigrantes em uma das áreas mais nobres da grande Lisboa

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Lisboa

Em meio à disparada de preços para alugar ou comprar uma casa em Portugal, há cada vez mais imigrantes brasileiros empurrados para situações precárias de habitação, incluindo alojamentos superlotados e até mesmo barracas de camping.

Em um terreno baldio arborizado em frente à praia de Carcavelos, uma das regiões mais valorizadas da grande Lisboa —ao lado de uma escola inglesa em que estudam os filhos da elite lisboeta, com mensalidades em torno de € 1.400 (R$ 7.400)— o número de moradias improvisadas vem crescendo nos últimos meses.

mulher morena sentada com as pernas para fora de barraca montada em terreno arborizado
Andreia Costa, 49, posa em barraca montada em terreno baldio arborizado em frente à praia de Carcavelos, na grande Lisboa - Giuliana Miranda/Folhapress

Entre os novos e velhos moradores do local há pelo menos 20 brasileiros. Alguns estão instalados em antigos motorhomes, mas a maioria está alojada em tendas de plástico. É esse o caso da paulistana Andreia Costa, 49, que chegou ao local há cerca de três meses.

"Eu vivi quatro meses em um quarto com mais duas pessoas. O aluguel era € 200 [R$ 1.060] e, depois, passou para € 300 [R$ 1.600]. No fim, a dona da casa queria me cobrar € 400 [R$ 2.113]. Achei um absurdo e resolvi sair", relata Andreia.

Ela se mudou para uma espécie de "puxadinho", onde também deixava a metade dos cerca de € 800 (R$ 4.226) que ganha por mês com faxinas e vendas de marmitas, mas pelo menos tinha o espaço só para si. Andreia então teve contato com outros brasileiros que estavam no acampamento improvisado e decidiu se mudar para o mesmo local.

"Isso aqui é uma estratégia para conseguir juntar dinheiro. Meu plano é ficar cinco meses aqui até ter o suficiente para comprar minha autocaravana [motorhome]. Também quero investir em montar uma estrutura melhor para as marmitas e para comprar meu maquinário de carpintaria", planeja.

Com experiência de mais de 20 anos como escoteira no Brasil, Andreia diz que está se virando bem na região. Como a área não tem eletricidade ou água encanada, ela conta muitas vezes com a solidariedade de suas clientes das faxinas para tomar banho e lavar as roupas.

Dona da barraca vizinha, Márcia Álvaro, 43, acabou chegando ao local após ficar sabendo da experiência da compatriota com o camping improvisado. Natural de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, ela está em terras lusas há pouco mais de seis meses. "Sempre tive o sonho de vir morar aqui em Portugal. Depois que a minha mãe morreu, decidi vir de uma vez."

mulher negra vestida de branco e com o cabelo coberto por bandana vermelha cozinha frango em acampamento improvisado
Márcia Álvaro, 43, faz comida em cozinha improvisada em terreno baldio em frente à praia de Carcavelos, na grande Lisboa - Giuliana Miranda/Folhapress

Também trabalhando com faxinas e marmitas, Márcia até conseguia pagar por um quarto alugado, mas os valores não bastavam para todas as contas do mês. "Uma vez precisei pedir dinheiro emprestado à dona da casa para conseguir pagar a passagem para trabalhar. Aquilo não era vida."

Apesar das dificuldades, ambas dizem não querer voltar para o Brasil. "Aqui você anda livremente a qualquer hora, sem medo de ser assaltado. Por mais que o salário seja baixo, você come bem, seu dinheiro tem poder de compra. Uma vez por semana eu como camarão", diz Andreia.

Os moradores do acampamento improvisado, em uma área conhecida como Quinta dos Ingleses, são, em sua maioria, imigrantes brasileiros e angolanos, mas há também portugueses.

Instalado em uma das áreas mais nobres do país, o terreno de 50 hectares, altamente arborizado, está envolvido em um imbróglio legal que travou a construção de um complexo de apartamentos e lojas de luxo.

Associações de moradores e ambientalistas, por sua vez, pressionam para que o espaço seja convertido em um parque natural público. Enquanto a situação não se resolve, as moradias improvisadas proliferam. Responsáveis pela segurança social, no entanto, dizem monitorar de perto a situação no espaço.

De acordo com um relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), Portugal foi um dos países europeus onde as casas mais encareceram nos últimos anos —o valor dos imóveis dobrou desde 2015. Recordista de preços no país, Lisboa lidera diversos rankings internacionais de inflação imobiliária. Um levantamento feito pela consultoria Savills mostra que a capital portuguesa registrou alta média de 43% em relação a dezembro de 2021.

A plataforma de classificados imobiliários Idealista, uma das maiores do país, indica que em julho o metro quadrado para aluguel em Lisboa era anunciado por € 18,70 (R$ 98,80). Isso significa que um apartamento de cerca de 40 metros quadrados pode custar o equivalente ao salário mínimo nacional, atualmente de € 760 (R$ 4.015).

O valor elevado das casas, combinado ao aumento do custo de vida impulsionado pela inflação e pela Guerra da Ucrânia, tem sido uma combinação explosiva para a crescente comunidade migrante no país, que muitas vezes dispõe de menos recursos financeiros e não conta com uma rede de apoio robusta.

Nos últimos anos, uma série de incêndios no centro de Lisboa tem chamado a atenção para as péssimas condições de vida de muitos migrantes, com frequência alojados em casas superlotadas. Em fevereiro, as chamas em um espaço comercial, irregularmente usado como moradia, mataram dois indianos e feriam outros 14 imigrantes de países como Nepal, Paquistão, Bangladesh e Argentina.

Diretor da associação Crescer, que há mais de 20 anos presta apoio à população sem-teto em Portugal, Américo Nave diz que o aumento da presença de imigrantes vivendo nas ruas já é bastante perceptível.

"Sempre houve trabalhadores vivendo nas ruas, mas agora, com essa questão da crise na habitação, esse fenômeno tem piorado e ficado mais visível. Quando quem está nas ruas são pessoas que normalmente não têm voz [no espaço público], isso chama menos a atenção."

Segundo Nave, é comum que estrangeiros em situação migratória irregular encontrem ainda mais dificuldades para conseguir ter acesso aos já disputados apoios oficiais na área da habitação. Para quem não fala português, a situação é ainda mais dramática.

Graças a uma operação de regularização em massa realizada nos últimos meses, boa parte da comunidade brasileira em Portugal já está com os documentos adequados para viver no país.

Criada no âmbito do acordo de mobilidade da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), a autorização de residência automática para cidadãos dos nove membros do bloco já beneficiou mais de 100 mil brasileiros desde que entrou em vigor, em março.

Devido principalmente a essa regularização em massa, o número de brasileiros legalmente residentes em Portugal atingiu 392.757 em agosto de 2023, o recorde absoluto da série histórica. Como a cifra oficial não inclui quem tem dupla cidadania portuguesa ou de outro país da União Europeia, o número real é ainda maior.

No entanto, a situação migratória regular e o fato de muitos estarem trabalhando —o país registrou em agosto taxa de desemprego de apenas 6,3%— não tem sido suficiente para garantir acesso à habitação.

A situação de Portugal já foi classificada, tanto pelo primeiro-ministro quanto pelo presidente da República, como uma "crise habitacional". Pressionado pela insatisfação popular e pelo aumento de protestos nas ruas pelo direito à habitação, o governo de Portugal anunciou em fevereiro um ambicioso pacote de medidas para tentar mitigar a situação. Várias das medidas, no entanto, como o aluguel compulsório de casas devolutas, acabaram posteriormente suavizadas no Parlamento.

Entre as iniciativas que já estão em vigor, algumas das principais armas do governo são um apoio extraordinário para as famílias que tenham mais de 30% da renda total comprometida com o aluguel, além de facilidades para a renegociação de financiamentos habitacionais.

As muitas restrições e pré-requisitos para ter acesso a ambos os benefícios, porém, têm limitado o alcance dessas ações. No próximo sábado (30), estão marcados novos protestos pelo direito à habitação digna em Lisboa e em várias outras cidades portuguesas.

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